terça-feira, 31 de outubro de 2017

O Amor é Cego Capítulo I parte 1

Londres, 1720
— Mowbray! Que bons ventos o trazem a cidade?
Lorde Joseph Jonas, o conde de Mowbray, desviou a atenção dos casais que dançavam e olhou para o homem que se aproximara dele. Alto, loiro, tremendamente bem-apessoado: Mikey Greville.
Joseph e Greville, seu primo, haviam sido muito amigos no passado. O tempo e a distância, porém, haviam enfraquecido esse laço, com uma pequena ajuda da guerra com a Espanha. Ignorando a pergunta de Mikey, ele retribuiu o cumprimento com um leve sorriso e voltou o olhar para a elegante coreografia dos homens e mulheres na pista de dança.
— Está aproveitando a temporada, Greville? — perguntou.
— Muito, muito. Sangue novo. Novas caras.
— Novas vítimas — Mowbray acrescentou em tom seco.
— Também. — Mikey riu. Ele era conhecido pelo sucesso em seduzir jovens inocentes. Só não fora ainda forçado a sair da cidade devido a seu título e fortuna.
Balançando a cabeça, Joseph esboçou um sorriso pálido.
— Você não se cansa nunca da caça. Lamento dizer que todas me parecem a mesma. Posso jurar que essas são decepcionantemente iguais às jovens que estavam debutando a última vez em que estive aqui, que eram iguais às do ano anterior.
O primo achou graça e sacudiu a cabeça.
— Faz dez anos que você se deu ao trabalho de vir pela última vez à cidade, Joseph . As jovens de então estão todas casadas e procriando, ou a caminho de se tornarem solteironas.
— Diferentes rostos, mesmas damas — Joseph  disse, dando de ombros.
— Tanto cinismo — censurou Mikey — Você soa como um velho, homem.
— Apenas mais velho – Joseph corrigiu. — Mais velho e mais sábio.
— Não. Velho! — Mikey insistiu, rindo e voltando o olhar para as pessoas que se movimentavam diante deles. — Além disso, há algumas verdadeiras belezuras este ano. Aquela loira, por exemplo, ou a morena com Chalmsly.
— Hum. — Joseph observou-as. — Corrija-me se eu estiver errado, mas acho que aquela moreninha, por mais encantadora que seja, não tem nada na cabeça. Assim como lady Penélope que você seduziu da última vez em que estive aqui.
Mikey arregalou os olhos surpreso com a observação.
— E a loira — Joseph continuou, examinando a jovem em questão — é filha de pais comerciantes, muito endinheirada, e à procura de alguém que tenha título para se juntar. Mais ou menos como Lily Ainsley, outra de suas conquistas.
— Acertou em cheio — Mikey admitiu, parecendo um pouco incrédulo. Alternando o olhar de uma mulher para outra, ele riu contrafeito: — Agora você estragou tudo. Eu estava considerando dar atenção a uma delas, ou a ambas, mas, depois do que disse, elas perderam qualquer encanto. — Franzindo a sobrancelha, Mikey esboçou uma reação: — Ah, mas conheço alguém que você não conseguiria analisar com tanta facilidade.
Pegando Joseph pelo braço, ele obrigou o primo a circular até o outro lado do salão, parando então.
— Lá está ela! – disse, satisfeito. — Aquela jovem com vestido de musselina amarela. Lady Demetria Lovato. Lanço o desafio de que você se lembre de alguém de sua última temporada com quem compará-la.
Joseph  examinou a jovem em questão. Mignon, de aparência muito delicada, e adorável como uma rosa recém-desabrochada. Tinha os cabelos castanho-escuros, rostinho redondo, olhos grandes e expressivos e lábios carnudos, e parecia tão deprimida ao observar a sua volta como jamais vira qualquer outra jovem. Sua curiosidade foi aguçada.
— Da última temporada? — perguntou.
— Isso – confirmou Mikey divertido.
— Por que não está dançando? Uma lindeza como ela deveria estar com todas as danças prometidas.
— Ninguém se atreve a tirá-la, e, se você quer bem a seus pés, é melhor que também não o faça.
Joseph  levantou as sobrancelhas, de modo inquisitorial.
— Ela é tão cega quanto um morcego e um perigo para as canelas — avisou Mikey, balançando a cabeça em confirmação diante do olhar incrédulo de Joseph . — De verdade, ela não consegue dar um passo sem pisar em seu pé e tropeçar. Ela nem sequer consegue andar sem tropeçar em tudo. — Ele fez uma pausa, avaliando a expressão de Joseph . — Sei que você não acredita. Eu também não acreditava. — Mikey voltou-se para fitar a jovem e continuou: — Fui bem avisado, mas não dei ouvidos e a convidei para jantar — disse, observando Joseph . — Estava usando calças escuras aquela noite... infelizmente. Ela confundiu meu colo com a mesa e colocou a xícara de chá em mim. Ou, melhor, tentou. A xícara capotou. — Mikey demonstrou desconforto à mera lembrança. — Pobre de mim, ela quase queimou minhas partes baixas.
Joseph encarou o primo e caiu na risada.
— Isso. Ria. Mas, se eu nunca tiver um filho, legítimo ou não, será por culpa exclusiva de lady Demetria .
Sacudindo a cabeça, Joseph riu ainda mais, o que lhe fez tão bem. Havia anos não achava a mínima graça em nada. Mas a imagem daquela linda florzinha perto da parede, confundindo o colo do primo com uma mesa e derrubando uma xícara de chá era valiosa.
— O que você fez? — finalmente perguntou.
Mikey meneou a cabeça e levantou as mãos em um gesto de desalento.
— O que poderia fazer? Agi como se nada tivesse acontecido, fiquei onde estava e tentei não chorar de dor. — Olhou novamente para a jovem com um suspiro. — E, verdade seja dita, acho que ela nem notou o que havia feito. Dizem que ela enxerga bem com os óculos, mas é fútil demais para usá-los.
Ainda sorrindo, Joseph seguiu o olhar que o primo dirigiu à jovem, observando com atenção seu ar tristonho.
— Não, ela não é fútil — ponderou, vendo a mulher mais velha ao lado de Demetria murmurar alguma coisa, levantar-se e sair.
— Bem... – Mikey ia dizendo, mas parou quando Joseph fez menção de se dirigir à jovem. Balançando a cabeça, ele balbuciou: — Você foi avisado.
— Não force a vista para não ficar estrábica, por favor.
Aquilo não era um pedido, mas uma ordem, e Demetria já estava farta das ordens da madrasta. Se ao menos permitisse que ela usasse óculos, não precisaria estreitar os olhos. Não ficaria tampouco tropeçando nas coisas e nas pessoas. Mas não podia usar os óculos porque afastaria os pretendentes.
Como se seus modos desastrados não os afastasse, refletiu Demetria cansada, e intimamente riu dos pequenos “acidentes” que tivera desde que chegara a Londres.
Além de não enxergar as mesas em que deveria colocar as bandejas de chá, tivera um tombo feio na escada. Por sorte, não havia se machucado muito, só alguns arranhões e algumas manchas, mas não quebrara nada. Houvera também o pequeno incidente de cair na frente de uma carruagem em movimento, sem falar de ter posto fogo na peruca de Prudhomme.
Um novo suspiro escapou dos lábios de Demetria ao lembrar do sermão de Taylor depois do último acidente. A madrasta havia decidido que se ela era tão cega e desastrada sem os óculos, só havia uma alternativa. No futuro, quando na presença de outras pessoas, teria de ficar sentada quieta. Não poderia tocar em castiçais, xícaras, pratos, ou seja, basicamente em nada. Não devia mais participar das refeições com as visitas, e sim dizer que não estava com fome. Mesmo que estivesse. Tampouco devia beber. Sair para caminhadas estava fora de questão se uma criada não estivesse junto.
Sempre que Taylor terminava tais discursos, só restava a Demetria , quando havia outras pessoas presentes, sentar-se ao lado da madrasta, procurando parecer serena. O que significava não estreitar os olhos.
Com um suspiro, Demetria voltou a olhar para os vultos que desfilavam pela pista de dança. Cansada, abaixou os olhos para as próprias mãos. Seria mais uma noite entediante.
— Posso ter o prazer desta dança?
Apesar de ouvir o convite, Demetria não se deu ao trabalho de levantar os olhos. Para quê? Não ia conseguir ver nada direito mesmo. Em vez disso, aguardou que a madrasta respondesse, perguntando a si mesma quem seria o estranho que ainda não ouvira falar de seus desastres. Se tivesse ouvido, com certeza não se aproximaria.
Percebendo que Taylor ainda não havia declinado o convite em seu nome, alegando que ela estava muito cansada, ou qualquer outra desculpa polida, Demetria olhou de lado e viu que Taylor, ou melhor, o borrão rosado como conseguia identificá-la, não estava mais lá. Nesse instante um borrão preto ocupou a cadeira, sobressaltando-a.
Forçando os olhos, ela tentou em vão ver vestígios rosa forte, cor que a madrasta usava, à sua volta.
— Acredito que a dama que estava sentada aqui até um minuto atrás saiu em busca de algo para comer — o estranho disse-lhe tão próximo ao ouvido que Demetria pôde sentir sua respiração.
Contendo um estremecimento, voltou de imediato a atenção para o homem a seu lado. Ele era dono de uma voz grave, muito agradável, e pelo que conseguia entrever de sua figura, era bastante grande. Pela milésima vez, desejava estar de óculos para poder enxergar.
— Ela não lhe disse aonde ia? — perguntou o estranho. — Me pareceu vê-la falando com você antes de sair.
Demetria corou um pouco, e tornou a fitar a mancha colorida que se movimentava pela pista de dança, admitindo:
— Talvez tenha dito. Acho que eu estava distraída com meus pensamentos e não prestei atenção.
Embora tivesse uma vaga lembrança de Taylor ter comentado alguma coisa, Demetria estava mergulhada demais em autocomiseração para prestar atenção.
Era muito humilhante ficar sentada, tendo como distração apenas fragmentos de conversa das pessoas que passavam, muitas vezes tecendo, indelicadamente, comentários a seu respeito. Seus desastres aparentemente eram a piada da temporada. Tinha ganho o apelido de estabanada Demetria , e todos ficavam na expectativa de qual seria o próximo “acidente” para se divertirem.
— Dizem que você é tão cega quanto um morcego, e fútil demais para usar óculos.
Demetria piscou os olhos surpresa diante dessa inesperada declaração. Se a indelicadeza das palavras dele a surpreenderam, ela pôde perceber que surpreenderam seu interlocutor ainda mais. A respiração dele ficou suspensa como se tivesse se dado conta do que havia dito. Olhando de soslaio, deu para perceber que ele levantara a mão para cobrir a boca.
— Perdão, acho que estive tempo demais longe da sociedade. Nunca deveria...
— Ora, não se preocupe. – Demetria dispensou as desculpas e afundou na cadeira com um ar desanimado. — Está tudo bem. Sei o que as pessoas falam. Acham que, além de desastrada, eu sou surda, pois não se preocupam de falar na minha frente ou por trás de seus leques. Falam bastante alto para que eu ouça. — Ela imitou o modo como as pessoas falavam, fazendo caretas. — Oh, vejam, lá está a coitadinha, a estabanada Demetria .
— Peço desculpas — ele disse baixinho.
— Não precisa se desculpar. Pelo menos você disse na minha cara.
— Sim, mas... — O rapaz pareceu relaxar um pouco agora que as mãos dela não significavam mais uma ameaça. — Na verdade, era mais uma pergunta. Eu queria saber se você é mesmo como dizem.
— Bem, não sou tão cega assim. — Demetria sorriu tristonha. — Enxergo bem de óculos. Mas minha madrasta os tirou de mim. — Ela arriscou um sorriso na direção dele e esclareceu: — Taylor parece acreditar que terei mais sorte de incendiar o coração de um bom partido sem os óculos. Embora a única coisa em que pus fogo até agora foi na peruca de lorde Prudhomme.
— Como? — Joseph perguntou, espantado. — Na peruca de Prudhomme?
— Sim — ela confirmou, recostando-se na cadeira e tentando afastar a lembrança. — Pois é. Mas, se quer saber, a culpa não foi inteiramente minha. Ele sabia que eu não enxergava bem sem meus óculos. Por que cargas d’água tinha de me pedir para levar a vela mais próxima a ele? — Demetria fez uma pausa e olhou de soslaio na direção do estranho. — Sem a peruca, ele é careca feito uma bola de bilhar, não é?
Pareceu-lhe que ele aquiesceu com a cabeça, mas era difícil dizer. Também percebeu sons abafados, como se ele estivesse lutando contra o riso.
— Vamos, pode rir — Demetria disse, sorrindo. — Eu também ri, só que não na hora.
Ele então relaxou um pouco mais e, como estivessem sentados lado a lado, Demetria pôde até sentir o vigor de seu braço e de sua perna que encostaram ligeiramente nela.
Demetria apertou os olhos, tentando fazer com que o rosto do estranho entrasse em foco. Queria muito ver como ele era. Gostava do som de sua risada e de sua voz, firme e macia. E, embora devesse se afastar um pouco para não permitir a proximidade do quadril dele roçando no seu a cada movimento, gostava da sensação que sentia, por isso fazia de conta que não percebia.
— Como Prudhomme reagiu a esse pequeno acidente?
— Nada bem. Me culpou, claro. Me disse um par de grosserias também. Acho que teria me agredido se os criados não o tivessem detido e tirado de casa — admitiu, suspirando. — É claro que depois minha madrasta não parou de fazer discurso sobre como devo e não devo me comportar daqui para frente.
— Que tipo de discurso?
— Quase tudo é proibido. — Demetria sorriu. — Veja, não posso comer em público, não posso beber em público... De fato, não posso tocar em nada, como castiçais, vasos de flor, nada. Não posso nem sair para um passeio sem uma companhia para me guiar.
— Mas ela não disse nada quanto a dançar, não é?
— Não, mas isso nem precisava. — O sorriso de Demetria esvaneceu-se. Ela hesitou por um momento, depois tentou explicar: — Não enxergo nada direito. Dançando só vejo borrões de cor e luz ao meu redor, e acabo perdendo o equilíbrio. — Ela fez uma pausa, sentindo que começava a corar à lembrança da última alma corajosa que a havia tirado para dançar. Tropeçara nele e ambos acabaram caindo no chão. Deveras constrangedor.
— Então mantenha os olhos fechados.
— Como? — Demetria voltou o olhar para o vulto escuro a seu lado.
— Se mantiver os olhos fechados, você não perderá o equilíbrio — o rapaz lhe explicou e ela sentiu a mão dele aproximar-se da sua, para ajudá-la a levantar-se.
Estava pronta para recusar, mas o toque da mão dele provocou-lhe um frisson. Foi uma sensação estranha, excitante, que a fez sentir-se viva.
— Eu não... — começou a dizer, parando quando ele pôs a mão em seu queixo, levantou seu rosto e inclinou para olhá-la nos olhos.
Por um breve momento, ela contemplou claramente o mais lindo par de olhos castanhos aveludados que já tinha visto; ele então se afastou um pouco e saiu de foco.
— Confie em mim.
Não era bem um pedido, mas uma imposição. Demetria pensou naqueles olhos tão escuros e tão gentis, e concordou com a cabeça. Ele ajudou-a a se levantar e conduziu-a entre as pessoas até a pista de dança.
— Agora... — A voz dele era calma e suave ao tomá-la nos braços. — Feche os olhos e relaxe.
Demetria estava hipnotizada.
— É só me acompanhar. Não deixarei que você tropece.
Apesar de ter acabado de conhecê-lo, Demetria confiou nele e sentiu-se em segurança. De olhos fechados, contava apenas com seus ouvidos e as mãos do rapaz para conduzi-la. Ela se deixou levar pelos toques dele: um aperto na mão, uma pressão mais forte em sua cintura. E a sensação do ar passando conforme rodopiavam e rodopiavam pelo salão, sem escorregões, nem tropeços. Pela primeira vez desde a sua chegada a Londres, Demetria não se sentia desajeitada. Estava nas nuvens.
Quando a música parou, ele apertou-lhe e, segurando-a pelo braço, conduziu-a pelo salão.
— Você dança divinamente, milady — disse-lhe ao ouvido, abrindo caminho entre os demais pares.
Demetria ficou ruborizada e sorriu orgulhosa, balançando a cabeça.
— Não, milorde. O crédito não é meu. Desconfio que é você quem dança divinamente. Com outras pessoas com quem dancei só fiz tropeçar e cair.
— Então a culpa é dessas pessoas. Você é leve e graciosa como uma pluma.
Demetria pensou por um breve momento e acabou concordando:
— Talvez esteja certo. Afinal, se fosse só problema meu, mesmo com seu óbvio talento não teria sido fácil me conduzir. Talvez meus parceiros anteriores estivessem um pouco nervosos e inseguros.
Ela percebeu o riso na voz dele e levantou as sobrancelhas, desconfiada.
— Milorde?
— Sua sinceridade. Estou encantado com sua falta de falsa modéstia. Isso nunca havia me incomodado antes, mas agora o nariz empinado das pessoas quando estão na cidade me é bastante desagradável. Achei deliciosa sua franqueza.
Demetria sentiu-se rubra, mas os primeiros acordes de uma nova música ecoaram no ar e seu parceiro tornou a tomá-la nos braços.
— Feche os olhos — ele recomendou, apertando o braço em volta de sua cintura.
De olhos fechados, Demetria entregou-se ao prazer da dança. Passou-lhe pela cabeça que não deveriam estar dançando tão colados. Mas se tentasse evitar essa proximidade, talvez se sentisse insegura e poderia tropeçar como antes. Além do mais, era tão gostoso estar nos braços dele. Sentia-se aninhada e segura.
— Por que você não desobedece a essa sua madrasta?
Demetria piscou, tentando em vão ver o rosto diante dela.
— Como assim?
— Por que você simplesmente não usa seus óculos?
— Ah, até tentei no primeiro dia em que cheguei a Londres — ela disse com uma certa irritação. — Desci com eles pronta para o baile de lorde Findlay. Taylor ficou lívida. Arrancou os óculos de meu rosto e quebrou-os bem diante de meus olhos para que eu visse o que estava fazendo.
— Ela teve a coragem de quebrar seus óculos? — Joseph indagou, visivelmente chocado com a desfaçatez da madrasta.
Demetria balançou a cabeça, séria.
— Taylor sempre dá um jeito de ser obedecida.
— Mas se ela os quebrou, como você faz para circular pela casa? — ele quis saber, pesaroso. 



e ja começou a nova fic, agora oficialmente 
bjemi

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