—
Não circulo. — Demetria deu um sorriso desolado e admitiu um pouco envergonhada:
— Preciso ser guiada pelos criados. É horrível.
—
Imagino que seja — ele sussurrou.
—
Hum. – Ela refletiu por um breve instante sobre toda essa humilhação e então
disse: — O pior de tudo é que não posso fazer nada sem meus óculos. Não posso
bordar, arrumar as flores, nada. E é impossível ler. Mesmo que eu grude os
livros nos meus olhos, não dá para ler por muito tempo, pois acabo ficando com
dor de cabeça. Imagine o meu tédio. Não faço outra coisa a não ser ficar
sentada, tamborilando os dedos.
Joseph teceu um comentário solidário embora seus
lábios esboçassem um leve sorriso. A expressão amuada de Demetria era deliciosa de se ver. Ela era muito
encantadora. Ainda que talvez não da maneira tradicional. Os lábios eram
grandes demais para serem considerados bonitos, mas ele os achava simplesmente
sedutores. E o nariz talvez fosse um tanto atrevido para os padrões da época,
mas ele gostava.
Joseph estava tão ocupado em observar as feições de
Demetria que mal percebeu quando a
música mudou. Finalmente acertou o passo para a valsa, sem contudo desviar os
olhos do rosto dela, enquanto ouvia as inúmeras atribulações de uma vida sem
óculos. E a lista era indiscutivelmente longa.
Vestir-se
era uma tarefa difícil, pois sempre dependia do humor da criada e ficava
torcendo para estar com a roupa adequada. Nunca sabia como estava o cabelo e
também para prendê-lo dependia da criada. Ela ia explicando e parecia não ouvir
as afirmações dele de que seu penteado estava perfeito e seu vestido era
impecável.
Demetria obviamente não buscava elogios. Corando
muito, ela ignorou as palavras dele e continuou a explicar que tinha que ser
guiada pela casa pela mesma criada, por temer cair da escada ou tropeçar em
alguma coisa que não visse. E, sem dúvida, confundir uma pessoa com outra era
mais um problema, embora começasse a ficar exímia em reconhecer vozes. Era
também irritante deixar a comida cair no colo, muito embora isso só acontecesse
na intimidade,
uma
vez que não tinha autorização para comer ou beber na frente de visitantes. Só
faltava usar babador para poupar as roupas.
Joseph mordeu os lábios para não rir ao imaginá-la
de babador, mas as coisas que contava foram ficando mais graves, como quase ter
incendiado a casa algumas vezes ao acender as velas e ter derrubado o mordomo e
vários criados inúmeras vezes, sabendo que todos a odiavam por causa disso.
Eles se encolhiam quando ela estava por perto e já cochichavam que ela era um
desastre ambulante.
Demetria contava cada detalhe de forma animada, e
Joseph tinha dificuldade de reprimir um
ar divertido e conter a risada, até que ela percebeu o esforço que, por
delicadeza, ele estava fazendo e lhe disse que podia rir à vontade.
A
sonora gargalhada que soltou surpreendeu o próprio Joseph . Demetria fez sua alma sentir-se leve e seu coração
doer de ansiedade.
—
Você tem uma linda voz, milorde. E uma linda risada também — ela elogiou,
sorrindo.
—
Obrigado, milady — disse ele, refazendo-se do riso. — É bondade sua me dizer
isso, depois de meus maus modos em rir de suas desgraças. Peço-lhe de coração
que me perdoe.
—
Imagine! — Demetria retrucou. — Olhando
em retrospectiva, parece mesmo engraçado, embora duvide que Taylor acharia.
À
menção do nome da madrasta, o humor de Joseph
mudou e, muito embora ela não conseguisse ver, a expressão de seu rosto
se fechou.
—
Desculpe-me a sinceridade, milady, mas sua madrasta me parece bastante maldosa,
uma cretina.
—
Nossa! — Demetria olhou-o de soslaio. —
Não diga uma coisa dessas.
—
Por que não? — ele perguntou, divertido. — Não tenho o mínimo medo dela.
—
Não, mas se ela soubesse ficaria furiosa e não iria gostar de você por
referir-se a ela desse jeito.
—
Não faço a mínima questão de que ela goste ou não goste de mim... — Joseph começou a dizer, mas foi interrompido por
ela.
—
Oh, mas deveria. Se Taylor não gostar de você, não permitirá mais que eu dance
com você e... eu estou adorando — desabafou Demetria um tanto constrangida.
O
ar de desprezo que havia no rosto de Joseph
esvaiu-se diante dessa confissão, dando lugar a um olhar terno.
—
Bem, nesse caso vou me esforçar por tratá-la com o máximo respeito. — Ele
percebeu o constrangimento dela e acrescentou: — Porque eu também gosto muito
de dançar com você.
Demetria levantou o rosto radiante. Foi uma pena não
conseguir enxergar o sorriso que ele lhe devolveu.
Como
que por instinto, Joseph dirigiu o olhar
para o lugar onde Demetria estava quando
a viu pela primeira vez. Diminuiu um pouco o passo ao vislumbrar a dama que
estava sentada junto a ela naquele momento. A madrasta estava de
volta
ao mesmo lugar depois de saciar a fome e percorria o salão com os olhos à
procura da enteada sumida. Não demorou muito para que localizasse a atrevida.
Como
esperava, Taylor não pareceu muito satisfeita ao vê-los dançando. Na realidade,
parecia horrorizada. Ao perceber que ela começava agora a se encaminhar em
linha reta em direção a eles, Joseph
fingiu não vê-la e procurou, como um guardião, conduzir Demetria para a direção oposta.
Imaginou
que, ao se afastar, Taylor pararia e aguardaria que completassem a volta até se
aproximar dela, mas, olhando de relance, viu que ela os seguia pelo salão.
Aparentemente, a madrasta era do tipo persistente. Era o que deveria ter
imaginado. Ela lembrava um buldogue, pensou sem qualquer generosidade, e fitou
a jovem em seus braços.
—
Por que toda essa determinação de sua madrasta para que você não use óculos?
—
Ela quer que eu encontre o par perfeito. Meu pai ficará zangado se ela não
conseguir, entende.
—
Bem, de fato, não entendo — Joseph
balbuciou, mudando subitamente de direção ao ver que corriam o risco de
serem pegos pela madrasta. Manteve-se em silêncio por um momento, tentando
evitá-la, e então comentou: — Você certamente teria mais chance de encontrar o
par perfeito se pudesse vê-lo.
—
Devo confessar que também acho. Mas Taylor não acha. Ela diz que não sou nada
atraente de óculos e teme que isso acabaria com qualquer oportunidade, além de
meu passado comprometedor.
—
Passado comprometedor? — Surpreso com tal comentário, Joseph parou de supetão na beira da pista de dança.
—
Você não soube do escândalo?
Antes
que Joseph pudesse responder que não, um
grande vulto escuro se projetou sobre ambos. Virando-se, ele franziu a testa
irritado ao se deparar com a inconveniente madrasta que parou ofegante ao lado
deles.
—
Demetria ! — Taylor disse bruscamente, e Joseph
sentiu a jovem enrijecer-se em seus braços sob a chicotada daquela voz,
afastando-se dele de um sobressalto para voltar-se para a madrasta.
—
Diga, Ta... — Demetria foi agarrada por
Taylor e arrastada pelo braço, sem a menor cerimônia, para bem distante de seu
par.
—
Bem, devo dizer que você se saiu muito melhor do que eu esperava.
Tirando
os olhos das costas de Demetria e de sua
madrasta que se afastavam, Joseph deu
com o primo uma vez mais a seu lado.
—
Será? — perguntou, distraído.
Mikey
sorriu irônico e encolheu os ombros.
—
Acho que sim. Afinal, ela não pisou em seus pés, não o fez cair, nem queimou
nenhuma de suas partes. Diria que é um bom começo.
—
É — replicou Joseph com um sorriso
amarelo. — Só fui perseguido pela pista por uma velha matrona que gesticulava
freneticamente como uma galinha batendo as asas.
Mikey
riu da descrição precisa do primo e completou:
—
Pois é, a pobre lady Demetria parece
destinada a terminar cada dia com uma nova humilhação. Tornou-se o assunto da
cidade.
—
Não é Demetria a causa do problema. E a
madrasta.
—
Concordo que a cena de hoje possa ter sido responsabilidade da madrasta. A
garota estava se saindo muito bem em seus braços, porém não dá para culpar
Taylor por todos os fiascos que contribuíram para a reputação da enteada.
—
Por que não? — Joseph perguntou,
levantando a sobrancelha.
—
Porque Taylor nem estava presente quando Demetria derrubou o chá em minhas pernas e queimou
minhas...
—
Mas isso não teria acontecido se ela estivesse de óculos, e a culpada disso é a
madrasta — interrompeu Joseph .
—
O quê?
—
Demetria não usa óculos. Não porque seja
fútil, mas porque a madrasta os tirou dela e os quebrou. Ela se nega a deixar a
garota usar óculos.
Mikey
não conseguiu disfarçar o espanto diante dessa revelação.
—
Por que diabos alguém faria isso?
—
Lady Lovato aparentemente acha que os óculos poderiam ser um obstáculo para a
enteada arrumar um marido.
—Ah...
entendo. — Mikey ficou pensativo, e Joseph
não conteve a curiosidade.
—
Ela me disse algo sobre um passado comprometedor. Você sabe do que se trata?
—
O quê? — Mikey o fitou de maneira penetrante e depois desviou os olhos,
demonstrando um certo desconforto. — Sei alguma coisa... de ouvir dizer, claro;
de fato, uma infelicidade. E nem foi culpa dela. O homem foi preso. Ainda
assim, pelo que me lembro, foi um escândalo na época. Causou um grande
falatório.
—
O que causou o falatório? — Quando Mikey o encarou indeciso, Joseph insistiu impaciente. — Que escândalo foi
esse?
—
Certamente você se recorda do caso, Joseph ? Foi na temporada depois da batalha
de Malplaquet... — Mikey baixou o tom de voz ao dizer isso, e seu olhar
deteve-se por um instante na cicatriz do rosto do primo, desviando-se em
seguida ao sentir um certo, desconforto. — É verdade, você deixou Londres e
retornou ao campo naquele ano.
Joseph teve uma expressão jocosa diante da frase
polida. Ele havia retornado ao campo mal chegando à cidade. O motivo,
naturalmente, fora o ferimento que deixara a cicatriz em seu rosto. Uma longa
cicatriz irregular que descia em ziguezague do canto de seu olho esquerdo até o
queixo ao lado da
boca.
Era seu suvenir da Guerra da Sucessão Espanhola e o ponto final em sua
promissora carreira militar.
Não
fora a única coisa que tivera um fim, Joseph
considerou, suspirando. Também fora o fim da ancestral e nobre família
Montfort, embora não tivesse se dado conta de início.
Havia
sido ingenuidade sua não perceber que a deformação de seu rosto causaria alvoroço.
Não que esperasse passar despercebido. Não era ingênuo a esse ponto. Mas não
podia imaginar que algumas mulheres mais fracas desmaiariam diante de sua
presença, e outras estremeceriam de pavor.
Joseph participara de apenas um baile em sua volta.
Fora mais que suficiente para resolver fazer as malas e regressar para sua
propriedade no campo, que era a residência oficial do conde de Mowbray. Seu pai
ainda vivia na ocasião e nada comentara sobre sua repentina opção de permanecer
na propriedade e cuidar da administração.
Após
a morte do pai, à medida que a dor da perda começara a amenizar um pouquinho,
sua mãe, lady Mowbray, passou a fazer campanha sobre os deveres de Joseph em relação ao nome da família, insistindo que
ele deveria se casar e providenciar um herdeiro. Por causa disso, tivera várias
discussões com a mãe, alegando sempre que ninguém iria querê-lo com o rosto
marcado daquele jeito, mas ela se fazia de surda às suas palavras.
Já
estava mais do que na hora de ele deixar de se esconder no campo e aprender a
aceitar a cicatriz. Isso era tudo o que a mãe tinha a dizer sobre o assunto.
Com sua intransigência, ela conseguira, depois de um ano repetindo as mesmas
palavras, arrastá-lo de volta à corte.
Joseph
, no entanto, sentia-se um ogro no meio de tanta gente bonita e sofisticada.
Pelo menos era assim que pensava, até se sentar ao lado de Demetria .
—
Enfim o encontro, filho. O que está fazendo escondido aqui neste cantinho como
um menino travesso?
Joseph achou graça das palavras da mãe, sentindo-se
realmente o menino travesso que ela acabara de mencionar. Apesar disso,
tomou-lhe a mão e levou-a aos lábios de maneira cortês.
—
Não estou em cantinho algum, mãe. Estou aqui bem exposto, exibindo minha
cicatriz para quem queira ver.
—
Ninguém a nota — Lady Mowbray disse em tom de censura. Você se incomoda mais do
que deve com ela. Com o passar do tempo, ficou cada vez mais discreta.
—
Pode ser — concordou Joseph , laconicamente. — Pelo menos ninguém mais desmaiou
ao me ver ou saiu aos gritos do salão. — Percebendo a crescente irritação da
mãe, ele sorriu, como que se desculpando, e mudou de assunto. — Mikey ia me
falar sobre o escândalo envolvendo lady Demetria .
A
mãe ergueu as sobrancelhas.
—
Eu o vi dançando com ela, querido. Cinco músicas seguidas. Arrisco-me a dizer
que muitas línguas estarão comentando que você deveria ser mais prudente.
—
Procurarei me lembrar disso — Joseph
respondeu de maneira ríspida, voltando o rosto para o primo com um ar
inquisidor. — E então?
—
Ah, é verdade! — Mikey dirigiu um sorriso à tia e tentou explicar ao primo: —
Bem, no fim do verão de 1710, Demetria , então com apenas doze anos, estava
visitando uma amiga aqui em Londres...
—
Não era uma amiga, era a tia dela, lady Smithson — corrigiu lady Mowbray,
delicadamente. — E ela estava com catorze anos e não doze.
—
Mesmo? — surpreendeu-se Mikey. — Bem, de toda forma, pouco depois de sua
chegada, um serviçal apareceu com uma mensagem, supostamente da criada da
mãe...
—
Do médico da mãe — interferiu lady Mowbray.
Joseph
riu do embaraço do primo ao ser novamente corrigido, não notando a expressão
surpresa da mãe ao vê-lo rir. Voltando-se com um raro sorriso para ela, ele
propôs:
—
Como a senhora parece estar mais a par dos fatos, talvez possa me explicar melhor
que escândalo foi esse.
—
Claro, meu querido. Aparentemente Demetria
foi visitar a tia sozinha porque a mãe estava doente na ocasião. Aliás,
ela veio a falecer poucos meses depois em consequência dessa doença, e lorde Lovato
casou-se com a atual lady Lovato, uma criatura das mais desagradáveis em todos
os sentidos. De todo jeito — prosseguiu lady Mowbray —, pouco depois que
Demetria chegou na casa da tia, apareceu
o criado com uma mensagem endereçada à tia, supostamente do médico de lady Lovato.
Informava que a mãe de Demetria tivera
uma piora e a expectativa era a de que teria somente mais um ou dois dias de
vida. A carta fazia recomendações para que a tia não alarmasse a menina,
revelando toda a gravidade do caso; deveria apenas dizer a Demetria que a mãe precisava dela e fazer com que
retornasse imediatamente pela mesma carruagem. Por mais tolo que possa parecer,
foi o que ela fez.
—
Tolo por quê? - Joseph quis saber.
—
A carruagem não tinha identificação, faltava a insígnia da família — explicou
Mikey, ansioso por dar sua contribuição à história.
Joseph fez uma expressão de surpresa:
—
E a tia não notou?
—
Ah, notou sim. Até perguntou ao criado — assegurou lady Mowbray. — Ele alegou
que a roda da carruagem da família havia quebrado ao passar por um buraco no
caminho de Londres, o que o obrigara a deixá-la para conserto em uma estalagem
à beira da estrada e alugar outro veículo para terminar a viagem. Esperava
poder retomá-la na viagem de volta, se estivesse consertada.
—
Uma justificativa bastante plausível — comentou Joseph .
—
Bastante plausível mesmo — lady Mowbray concordou, pensativa. — Ainda assim, a
tia deveria ter pelo menos mandado uma criada com a jovem, ou fazer qualquer
coisa para garantir seu bem-estar. Mas não o fez. Lady Smithson simplesmente
empacotou a garota e seus pertences e a despachou com o tal criado na
carruagem.
—
Que não devia ser criado algum — Joseph
concluiu.
—
Ah, era sim, só que não a serviço da mãe dela. Mesmo porque não a levou para
casa, mas parou em Coventry. Lá ela foi conduzida para uma sala reservada onde
estavam o capitão Jeremy Fielding e a irmã.
—
Fielding? — Joseph espantou-se ao ouvir
o nome, como se um sinal de alarme tocasse em algum ponto de sua memória.
—
É. Esse capitão Fielding explicou que, na verdade, a mãe estava bem, a caminho
da recuperação, e que Demetria havia
sido chamada por causa do pai. Contaram-lhe uma história vaga de que os
negócios dele tiveram uma súbita reviravolta e que, embora houvesse a intenção
de ele encontrá-la ali, precisara partir antes que ela chegasse. Acho que lhe
disseram que lorde Lovato estava sendo perseguido por autoridades e que
desejava que Demetria fosse ao encontro
dele. Ele teria contratado esse tal de Fielding e a irmã para levá-la em
segurança. — A expressão de lady Mowbray denotava menosprezo à medida que
prosseguia: — Naturalmente, Demetria não
passava de uma criança e foi facilmente enganada; ouso dizer que, de uniforme,
esse capitão Fielding tinha uma figura elegante e imponente. A garota foi sem
protestar. Viajaram por dois dias, supostamente desencontrando-se do pai dela
aqui e ali, até que chegaram a Carlisle onde o capitão deixou a irmã e
Demetria sozinhas em uma estalagem e
partiu sob a desculpa de que estava indo ao encontro de lorde Lovato. Ao
retornar, Fielding contou que a família dela estava à beira da ruína e que a
única maneira de evitar a pobreza seria que ela se casasse com ele, o que seu
pai desejava que fizessem imediatamente.
—
Como um casamento salvaria a família da ruína? — indagou Joseph , franzindo a
testa.
—
Não sei ao certo. — Lady Mowbray voltou-se indagativa para Mikey: — Você tem
conhecimento do que ele pretendia?
—
Creio que tem algo a ver com a herança que Demetria receberia por parte do avô materno somente
quando se casasse. Uma vez casada, ela teria direito à herança, e as supostas
dívidas do pai poderiam ser pagas, salvando a família.
—
Hum. — Todos permaneceram calados por um momento, e depois Joseph perguntou: — Desconfio que esse Fielding se
ofereceu como um mártir disposto a ajudá-la naquele momento de necessidade.
Lady
Mowbray assentiu com a cabeça, comentando com um leve sorriso irônico:
—
Que bondade a dele, não?
—
Muita! — revidou Joseph .
—
Então eles partiram para Gretna Green — intrometeu-se Mikey, em tom animado. —
Casaram-se sem proclamas nem padre, diante de uma prostituta, de um ladrão e de
um ferreiro, viajando, em seguida, para Calais em lua-de-mel.
—
As testemunhas foram o dono de uma taberna, um alfaiate e o ferreiro — corrigiu
lady Mowbray em tom árido. — E eles nunca chegaram a Calais, foram detidos nas
docas. Minha nossa — acrescentou com um toque de malícia —, é interessante como
os boatos se misturam aos fatos, não?
Joseph achava graça como um olhar de lady Mowbray
conseguia desconcertar o primo; procurando desanuviar rapidamente a tensão,
perguntou:
—
Quem os deteve?
—
O pai dela, naturalmente. Quer dizer, não foi bem o pai. Depois que a menina
partiu, a tia recuperou bom senso suficiente para ficar preocupada com a falta
de identificação da carruagem e enviou uma mensagem a lorde Lovato, pedindo
notícias da esposa e comentando seu temor de que algo estivesse errado. Lovato
contratou vários homens para dar buscas da menina em Gretna Green e,
posteriormente, para investigar sobre o barco em que haviam sido feitas as
reservas para Calais. Parece que Fielding havia dito a ela que o pai os
encontraria lá, mas os enviados do pai acabaram por detê-los, explicaram que
tudo não passava de uma trapaça e levaram a humilhada menina de volta. Segundo
o que dizem ela ficou absolutamente perturbada.
—
E o que aconteceu a Fielding? — indagou Joseph , pensando na injustiça que a
jovem havia sofrido. Obviamente nada daquilo era culpa dela.
—
Bem, primeiro ele também voltou — explicou lady Mowbray. — Estava convencido de
que o pai de Demetria não poderia fazer
nada contra ele. Estavam casados, afinal de contas. O pai de Demetria , porém,
era um homem astuto. Conseguiu que Fielding fosse condenado sob a acusação de
raptar uma menor e providenciou a anulação do casamento. Levou também a filha
imediatamente para o campo para afastá-la do escândalo. Não que isso tenha
ajudado muito — acrescentou, dando um suspiro.
—
Por que diz isso? — Joseph perguntou,
curioso.
—
Ora, porque o fato de não estar aqui não conseguiu evitar a maledicência — lady
Mowbray explicou, pesarosa. — O caso era picante demais para ser abafado.
Rendeu bastante. Especulou-se até que o casamento tivesse sido consumado diante
do descaramento de Fielding em voltar. E o fato de o pai tê-la levado embora
fez com que as pessoas se perguntassem se não era para esconder um possível
fruto desse casamento relâmpago.
—
E houve esse fruto? —Joseph não conteve
a pergunta.
—
Ninguém sabe — Mikey aparteou. — Esta é a primeira vinda dela a Londres depois
do acontecido e isso já faz dez anos.
Joseph olhou inquisidor para a mãe que parecia estar
melhor informada sobre os desdobramentos do caso até aquela data. Para seu
desapontamento, porém, ela simplesmente deu de ombros e disse com evidente
relutância:
—
E possível. Depois do casamento, eles passaram uma noite em uma estalagem,
embora as reservas tivessem sido feitas em quartos separados. O tal do barco
zarparia só no dia seguinte ao casamento.
—
E Fielding? — Joseph perguntou.
—
Ele fugiu antes que fosse marcado o julgamento. Lady Witherspoon me contou que
ele retornou à Inglaterra alguns anos depois e acabou sendo capturado. No
julgamento foi considerado culpado e sentenciado a cinco anos de prisão em
Newgate. Desde então não se soube mais dele.
Fez-se
um silêncio entre eles. Joseph estava
perdido em seus pensamentos, digerindo a revolta de que o breve casamento de
Demetria pudesse ter sido consumado. Com
esse pensamento na cabeça, ele percorreu o olhar pelo salão, inconscientemente
buscando a jovem e a madrasta.
—
Elas saíram logo depois daquela cena ridícula na pista de dança — disse lady
Mowbray, lendo seus pensamentos.
Joseph olhou para a mãe espantado, viu o brilho dos
olhos dela e percebeu sua esperança de que ele estivesse interessado. E, sim.
Ele estava interessado.
Entre
a conversa que tivera com Demetria , enquanto estavam sentados, e as cinco
músicas que sua mãe dizia tê-los visto dançar, não havia decorrido mais de meia
hora. Mas pareciam-lhe perfeitos os momentos em que estiveram juntos. Ele havia
sorrido mais nesse curto espaço de tempo do que em todos aqueles anos desde que
se ferira. Pela primeira vez sentira-se inteiro e sem defeitos.
Qualquer
mulher que o tivesse feito sentir-se daquele maneira era merecedora de seu
interesse e, sim, Joseph tinha de
admitir a si mesmo, estava definitivamente interessado, o que agradaria sua mãe
ao extremo, pensou. Havia, porém, um problema. O mesmo motivo que permitira que
relaxasse na presença dela era também a fonte do problema. Demetria não conseguira vê-lo bem, mas isso era
temporário. Sua preocupação era o que aconteceria quando o enxergasse direito e
visse que horror era o homem com que havia falado e dançado. Como ela reagiria?
Será que ela se encolheria de medo como se ele fosse um monstro? Desmaiaria horrorizada
à mera visão dele?
Só
de pensar em cada uma dessas alternativas, sofria.
—
Quer que eu descubra para você mais alguma coisa sobre essa jovem? — lady
Mowbray perguntou, tirando Joseph de
suas reflexões.
Ele
fitou a mãe, incapaz de responder. Seu coração dizia que sim, mas sua mente o
atormentava de medo.
Subitamente
irritado com o assunto, Joseph virou-se
sem responder e caminhou em direção à porta. Tivera o suficiente da chamada
alta sociedade por uma noite.
—
Você está proibida de voltar a falar com lorde Mowbray.
Na
escuridão da carruagem, o olhar de Demetria
se dirigiu à silhueta da madrasta.
—
É esse o nome do cavalheiro com quem eu estava dançando? — Demetria perguntou, somente então, dando-se conta de
que nem o nome dele sabia. Será que ele sabia o dela?
—
É! — foi a resposta seca de Taylor, rangendo os dentes. — Lorde Joseph Jonas, o
conde de Mowbray. E você mantenha-se bem longe dele.
Demetria hesitou, em dúvida se seria prudente
perguntar à madrasta por que estava tão zangada, mas não conseguiu se conter e
a pergunta escapou-lhe dos lábios:
—
Mas por que devo ficar longe dele? Ele se comportou como um perfeito cavalheiro
e, se é o conde...
—
Ele não se comportou como um perfeito cavalheiro — Taylor a contradisse. —
Estava dançando muito junto de você quando não deveria nem ter se aproximado
sem a devida apresentação.
Demetria mordeu os lábios diante dessa afirmação.
Realmente não tinha sido muito adequado de nenhum dos dois.
—
Mowbray foi muito farrista quando jovem — prosseguiu Taylor. — Estragou a vida
de muitas jovens, coitadas. Não é para menos que Deus achou justo comprometer
sua aparência.
Demetria engoliu o protesto que ia fazer. Sabia que
não seria bom abrir a boca.
—
Mantenha-se bem longe dele. Ele não tem qualquer boa intenção com você. Só vai
brincar com seus sentimentos e causar ainda mais dano à sua reputação. Seu pai
conta comigo para que você faça um bom casamento. Nunca me perdoaria se eu
permitisse que você se envolvesse com aquele farrista em um novo escândalo.
Demetria suspirou infeliz diante dessa sentença, mas
permaneceu calada, voltando os olhos para a escuridão da noite cortada pelo
brilho efêmero das luzes ao passar da carruagem. Não valia a pena discutir.
Engoliu então a raiva, fingiu estar distraída e rememorou os momentos que
estivera com Mowbray.
Joseph
Jonas, conde de Mowbray, repetiu mentalmente, considerando que não poderia
haver nome mais adequado a ele. Como ele havia sido agradável. Tinha uma
impressão completamente diferente de um conde. Os poucos que havia conhecido
até então mostravam-se arrogantes e frios com ela, mas Joseph fora doce e paciente, compreensivo e
encorajador. Demetria não conseguia
esquecer o som da voz, do hálito com um leve aroma de fumo, a firmeza dos
braços em volta de sua cintura quando dançavam. Sentira-se tão segura... Era
difícil de acreditar que ele fosse um devasso, um corruptor de donzelas.
Um
suspiro profundo da madrasta interrompeu seus pensamentos. Ela procurou fixar
os olhos na figura embaçada no banco oposto.
—
Se ao menos você enxergasse um pouco — Taylor lamentou de súbito —, eu não
precisaria me preocupar com suas possíveis fantasias sobre ele.
—
Por quê? — Demetria indagou cheia de
curiosidade, refreando o ímpeto de dizer que enxergaria muito bem se tivesse
seus óculos de volta.
—
Porque ele é tão feio quanto seus pecados — Taylor teve o prazer de dizer. —
Ele era um dos homens mais atraentes da cidade, mas participou de uma batalha
da Guerra da Sucessão Espanhola e foi gravemente ferido no rosto, que ficou com
uma cicatriz horrível. Ele é o assunto do momento agora. Ninguém acreditava que
ele ousasse aparecer com o rosto desse jeito.
—
Somos o par perfeito, então — murmurou Demetria . — Dois defeituosos apontados
e comentados por todos.
—
O que é isso? — Taylor reagiu brava.
—
Nada. — Demetria virou o rosto, dando um
suspiro profundo.
A
carruagem percorria as ruas da cidade que lhe pareciam uma longa mancha escura.
Nada do que a madrasta lhe dissera diminuíra Mowbray a seus olhos. Simplesmente
não acreditava que Mowbray lhe fizesse mal algum e sabia que ele não era tão
feio como a madrasta o pintara. Tinha visto a cicatriz que corria de um lado de
seu rosto quando ele se aproximara mais para falar com ela. Embora não
enxergasse direito, não lhe parecera tão horrível e o outro lado do rosto era
perfeito. Ele era incrivelmente atraente. Mas não contestaria a madrasta.
Tadinha da Demi, essa madrasta é um saco.
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