terça-feira, 7 de novembro de 2017

O Amor é Cego Capitulo I parte 2

— Não circulo. — Demetria deu um sorriso desolado e admitiu um pouco envergonhada: — Preciso ser guiada pelos criados. É horrível.
— Imagino que seja — ele sussurrou.
— Hum. – Ela refletiu por um breve instante sobre toda essa humilhação e então disse: — O pior de tudo é que não posso fazer nada sem meus óculos. Não posso bordar, arrumar as flores, nada. E é impossível ler. Mesmo que eu grude os livros nos meus olhos, não dá para ler por muito tempo, pois acabo ficando com dor de cabeça. Imagine o meu tédio. Não faço outra coisa a não ser ficar sentada, tamborilando os dedos.
Joseph  teceu um comentário solidário embora seus lábios esboçassem um leve sorriso. A expressão amuada de Demetria  era deliciosa de se ver. Ela era muito encantadora. Ainda que talvez não da maneira tradicional. Os lábios eram grandes demais para serem considerados bonitos, mas ele os achava simplesmente sedutores. E o nariz talvez fosse um tanto atrevido para os padrões da época, mas ele gostava.
Joseph  estava tão ocupado em observar as feições de Demetria  que mal percebeu quando a música mudou. Finalmente acertou o passo para a valsa, sem contudo desviar os olhos do rosto dela, enquanto ouvia as inúmeras atribulações de uma vida sem óculos. E a lista era indiscutivelmente longa.
Vestir-se era uma tarefa difícil, pois sempre dependia do humor da criada e ficava torcendo para estar com a roupa adequada. Nunca sabia como estava o cabelo e também para prendê-lo dependia da criada. Ela ia explicando e parecia não ouvir as afirmações dele de que seu penteado estava perfeito e seu vestido era impecável.
Demetria  obviamente não buscava elogios. Corando muito, ela ignorou as palavras dele e continuou a explicar que tinha que ser guiada pela casa pela mesma criada, por temer cair da escada ou tropeçar em alguma coisa que não visse. E, sem dúvida, confundir uma pessoa com outra era mais um problema, embora começasse a ficar exímia em reconhecer vozes. Era também irritante deixar a comida cair no colo, muito embora isso só acontecesse na intimidade,
uma vez que não tinha autorização para comer ou beber na frente de visitantes. Só faltava usar babador para poupar as roupas.
Joseph  mordeu os lábios para não rir ao imaginá-la de babador, mas as coisas que contava foram ficando mais graves, como quase ter incendiado a casa algumas vezes ao acender as velas e ter derrubado o mordomo e vários criados inúmeras vezes, sabendo que todos a odiavam por causa disso. Eles se encolhiam quando ela estava por perto e já cochichavam que ela era um desastre ambulante.
Demetria  contava cada detalhe de forma animada, e Joseph  tinha dificuldade de reprimir um ar divertido e conter a risada, até que ela percebeu o esforço que, por delicadeza, ele estava fazendo e lhe disse que podia rir à vontade.
A sonora gargalhada que soltou surpreendeu o próprio Joseph . Demetria  fez sua alma sentir-se leve e seu coração doer de ansiedade.
— Você tem uma linda voz, milorde. E uma linda risada também — ela elogiou, sorrindo.
— Obrigado, milady — disse ele, refazendo-se do riso. — É bondade sua me dizer isso, depois de meus maus modos em rir de suas desgraças. Peço-lhe de coração que me perdoe.
— Imagine! — Demetria  retrucou. — Olhando em retrospectiva, parece mesmo engraçado, embora duvide que Taylor acharia.
À menção do nome da madrasta, o humor de Joseph  mudou e, muito embora ela não conseguisse ver, a expressão de seu rosto se fechou.
— Desculpe-me a sinceridade, milady, mas sua madrasta me parece bastante maldosa, uma cretina.
— Nossa! — Demetria  olhou-o de soslaio. — Não diga uma coisa dessas.
— Por que não? — ele perguntou, divertido. — Não tenho o mínimo medo dela.
— Não, mas se ela soubesse ficaria furiosa e não iria gostar de você por referir-se a ela desse jeito.
— Não faço a mínima questão de que ela goste ou não goste de mim... — Joseph  começou a dizer, mas foi interrompido por ela.
— Oh, mas deveria. Se Taylor não gostar de você, não permitirá mais que eu dance com você e... eu estou adorando — desabafou Demetria  um tanto constrangida.
O ar de desprezo que havia no rosto de Joseph  esvaiu-se diante dessa confissão, dando lugar a um olhar terno.
— Bem, nesse caso vou me esforçar por tratá-la com o máximo respeito. — Ele percebeu o constrangimento dela e acrescentou: — Porque eu também gosto muito de dançar com você.
Demetria  levantou o rosto radiante. Foi uma pena não conseguir enxergar o sorriso que ele lhe devolveu.
Como que por instinto, Joseph  dirigiu o olhar para o lugar onde Demetria  estava quando a viu pela primeira vez. Diminuiu um pouco o passo ao vislumbrar a dama que estava sentada junto a ela naquele momento. A madrasta estava de
volta ao mesmo lugar depois de saciar a fome e percorria o salão com os olhos à procura da enteada sumida. Não demorou muito para que localizasse a atrevida.
Como esperava, Taylor não pareceu muito satisfeita ao vê-los dançando. Na realidade, parecia horrorizada. Ao perceber que ela começava agora a se encaminhar em linha reta em direção a eles, Joseph  fingiu não vê-la e procurou, como um guardião, conduzir Demetria  para a direção oposta.
Imaginou que, ao se afastar, Taylor pararia e aguardaria que completassem a volta até se aproximar dela, mas, olhando de relance, viu que ela os seguia pelo salão. Aparentemente, a madrasta era do tipo persistente. Era o que deveria ter imaginado. Ela lembrava um buldogue, pensou sem qualquer generosidade, e fitou a jovem em seus braços.
— Por que toda essa determinação de sua madrasta para que você não use óculos?
— Ela quer que eu encontre o par perfeito. Meu pai ficará zangado se ela não conseguir, entende.
— Bem, de fato, não entendo — Joseph  balbuciou, mudando subitamente de direção ao ver que corriam o risco de serem pegos pela madrasta. Manteve-se em silêncio por um momento, tentando evitá-la, e então comentou: — Você certamente teria mais chance de encontrar o par perfeito se pudesse vê-lo.
— Devo confessar que também acho. Mas Taylor não acha. Ela diz que não sou nada atraente de óculos e teme que isso acabaria com qualquer oportunidade, além de meu passado comprometedor.
— Passado comprometedor? — Surpreso com tal comentário, Joseph  parou de supetão na beira da pista de dança.
— Você não soube do escândalo?
Antes que Joseph  pudesse responder que não, um grande vulto escuro se projetou sobre ambos. Virando-se, ele franziu a testa irritado ao se deparar com a inconveniente madrasta que parou ofegante ao lado deles.
— Demetria ! — Taylor disse bruscamente, e Joseph  sentiu a jovem enrijecer-se em seus braços sob a chicotada daquela voz, afastando-se dele de um sobressalto para voltar-se para a madrasta.
— Diga, Ta... — Demetria  foi agarrada por Taylor e arrastada pelo braço, sem a menor cerimônia, para bem distante de seu par.
— Bem, devo dizer que você se saiu muito melhor do que eu esperava.
Tirando os olhos das costas de Demetria  e de sua madrasta que se afastavam, Joseph  deu com o primo uma vez mais a seu lado.
— Será? — perguntou, distraído.
Mikey sorriu irônico e encolheu os ombros.
— Acho que sim. Afinal, ela não pisou em seus pés, não o fez cair, nem queimou nenhuma de suas partes. Diria que é um bom começo.
— É — replicou Joseph  com um sorriso amarelo. — Só fui perseguido pela pista por uma velha matrona que gesticulava freneticamente como uma galinha batendo as asas.
Mikey riu da descrição precisa do primo e completou:
— Pois é, a pobre lady Demetria  parece destinada a terminar cada dia com uma nova humilhação. Tornou-se o assunto da cidade.
— Não é Demetria  a causa do problema. E a madrasta.
— Concordo que a cena de hoje possa ter sido responsabilidade da madrasta. A garota estava se saindo muito bem em seus braços, porém não dá para culpar Taylor por todos os fiascos que contribuíram para a reputação da enteada.
— Por que não? — Joseph  perguntou, levantando a sobrancelha.
— Porque Taylor nem estava presente quando Demetria  derrubou o chá em minhas pernas e queimou minhas...
— Mas isso não teria acontecido se ela estivesse de óculos, e a culpada disso é a madrasta — interrompeu Joseph .
— O quê?
— Demetria  não usa óculos. Não porque seja fútil, mas porque a madrasta os tirou dela e os quebrou. Ela se nega a deixar a garota usar óculos.
Mikey não conseguiu disfarçar o espanto diante dessa revelação.
— Por que diabos alguém faria isso?
— Lady Lovato aparentemente acha que os óculos poderiam ser um obstáculo para a enteada arrumar um marido.
—Ah... entendo. — Mikey ficou pensativo, e Joseph  não conteve a curiosidade.
— Ela me disse algo sobre um passado comprometedor. Você sabe do que se trata?
— O quê? — Mikey o fitou de maneira penetrante e depois desviou os olhos, demonstrando um certo desconforto. — Sei alguma coisa... de ouvir dizer, claro; de fato, uma infelicidade. E nem foi culpa dela. O homem foi preso. Ainda assim, pelo que me lembro, foi um escândalo na época. Causou um grande falatório.
— O que causou o falatório? — Quando Mikey o encarou indeciso, Joseph  insistiu impaciente. — Que escândalo foi esse?
— Certamente você se recorda do caso, Joseph ? Foi na temporada depois da batalha de Malplaquet... — Mikey baixou o tom de voz ao dizer isso, e seu olhar deteve-se por um instante na cicatriz do rosto do primo, desviando-se em seguida ao sentir um certo, desconforto. — É verdade, você deixou Londres e retornou ao campo naquele ano.
Joseph  teve uma expressão jocosa diante da frase polida. Ele havia retornado ao campo mal chegando à cidade. O motivo, naturalmente, fora o ferimento que deixara a cicatriz em seu rosto. Uma longa cicatriz irregular que descia em ziguezague do canto de seu olho esquerdo até o queixo ao lado da
boca. Era seu suvenir da Guerra da Sucessão Espanhola e o ponto final em sua promissora carreira militar.
Não fora a única coisa que tivera um fim, Joseph  considerou, suspirando. Também fora o fim da ancestral e nobre família Montfort, embora não tivesse se dado conta de início.
Havia sido ingenuidade sua não perceber que a deformação de seu rosto causaria alvoroço. Não que esperasse passar despercebido. Não era ingênuo a esse ponto. Mas não podia imaginar que algumas mulheres mais fracas desmaiariam diante de sua presença, e outras estremeceriam de pavor.
Joseph  participara de apenas um baile em sua volta. Fora mais que suficiente para resolver fazer as malas e regressar para sua propriedade no campo, que era a residência oficial do conde de Mowbray. Seu pai ainda vivia na ocasião e nada comentara sobre sua repentina opção de permanecer na propriedade e cuidar da administração.
Após a morte do pai, à medida que a dor da perda começara a amenizar um pouquinho, sua mãe, lady Mowbray, passou a fazer campanha sobre os deveres de Joseph  em relação ao nome da família, insistindo que ele deveria se casar e providenciar um herdeiro. Por causa disso, tivera várias discussões com a mãe, alegando sempre que ninguém iria querê-lo com o rosto marcado daquele jeito, mas ela se fazia de surda às suas palavras.
Já estava mais do que na hora de ele deixar de se esconder no campo e aprender a aceitar a cicatriz. Isso era tudo o que a mãe tinha a dizer sobre o assunto. Com sua intransigência, ela conseguira, depois de um ano repetindo as mesmas palavras, arrastá-lo de volta à corte.
Joseph , no entanto, sentia-se um ogro no meio de tanta gente bonita e sofisticada. Pelo menos era assim que pensava, até se sentar ao lado de Demetria .
— Enfim o encontro, filho. O que está fazendo escondido aqui neste cantinho como um menino travesso?
Joseph  achou graça das palavras da mãe, sentindo-se realmente o menino travesso que ela acabara de mencionar. Apesar disso, tomou-lhe a mão e levou-a aos lábios de maneira cortês.
— Não estou em cantinho algum, mãe. Estou aqui bem exposto, exibindo minha cicatriz para quem queira ver.
— Ninguém a nota — Lady Mowbray disse em tom de censura. Você se incomoda mais do que deve com ela. Com o passar do tempo, ficou cada vez mais discreta.
— Pode ser — concordou Joseph , laconicamente. — Pelo menos ninguém mais desmaiou ao me ver ou saiu aos gritos do salão. — Percebendo a crescente irritação da mãe, ele sorriu, como que se desculpando, e mudou de assunto. — Mikey ia me falar sobre o escândalo envolvendo lady Demetria .
A mãe ergueu as sobrancelhas.
— Eu o vi dançando com ela, querido. Cinco músicas seguidas. Arrisco-me a dizer que muitas línguas estarão comentando que você deveria ser mais prudente.
— Procurarei me lembrar disso — Joseph  respondeu de maneira ríspida, voltando o rosto para o primo com um ar inquisidor. — E então?
— Ah, é verdade! — Mikey dirigiu um sorriso à tia e tentou explicar ao primo: — Bem, no fim do verão de 1710, Demetria , então com apenas doze anos, estava visitando uma amiga aqui em Londres...
— Não era uma amiga, era a tia dela, lady Smithson — corrigiu lady Mowbray, delicadamente. — E ela estava com catorze anos e não doze.
— Mesmo? — surpreendeu-se Mikey. — Bem, de toda forma, pouco depois de sua chegada, um serviçal apareceu com uma mensagem, supostamente da criada da mãe...
— Do médico da mãe — interferiu lady Mowbray.
Joseph riu do embaraço do primo ao ser novamente corrigido, não notando a expressão surpresa da mãe ao vê-lo rir. Voltando-se com um raro sorriso para ela, ele propôs:
— Como a senhora parece estar mais a par dos fatos, talvez possa me explicar melhor que escândalo foi esse.
— Claro, meu querido. Aparentemente Demetria  foi visitar a tia sozinha porque a mãe estava doente na ocasião. Aliás, ela veio a falecer poucos meses depois em consequência dessa doença, e lorde Lovato casou-se com a atual lady Lovato, uma criatura das mais desagradáveis em todos os sentidos. De todo jeito — prosseguiu lady Mowbray —, pouco depois que Demetria  chegou na casa da tia, apareceu o criado com uma mensagem endereçada à tia, supostamente do médico de lady Lovato. Informava que a mãe de Demetria  tivera uma piora e a expectativa era a de que teria somente mais um ou dois dias de vida. A carta fazia recomendações para que a tia não alarmasse a menina, revelando toda a gravidade do caso; deveria apenas dizer a Demetria  que a mãe precisava dela e fazer com que retornasse imediatamente pela mesma carruagem. Por mais tolo que possa parecer, foi o que ela fez.
— Tolo por quê? - Joseph  quis saber.
— A carruagem não tinha identificação, faltava a insígnia da família — explicou Mikey, ansioso por dar sua contribuição à história.
Joseph  fez uma expressão de surpresa:
— E a tia não notou?
— Ah, notou sim. Até perguntou ao criado — assegurou lady Mowbray. — Ele alegou que a roda da carruagem da família havia quebrado ao passar por um buraco no caminho de Londres, o que o obrigara a deixá-la para conserto em uma estalagem à beira da estrada e alugar outro veículo para terminar a viagem. Esperava poder retomá-la na viagem de volta, se estivesse consertada.
— Uma justificativa bastante plausível — comentou Joseph .
— Bastante plausível mesmo — lady Mowbray concordou, pensativa. — Ainda assim, a tia deveria ter pelo menos mandado uma criada com a jovem, ou fazer qualquer coisa para garantir seu bem-estar. Mas não o fez. Lady Smithson simplesmente empacotou a garota e seus pertences e a despachou com o tal criado na carruagem.
— Que não devia ser criado algum — Joseph  concluiu.
— Ah, era sim, só que não a serviço da mãe dela. Mesmo porque não a levou para casa, mas parou em Coventry. Lá ela foi conduzida para uma sala reservada onde estavam o capitão Jeremy Fielding e a irmã.
— Fielding? — Joseph  espantou-se ao ouvir o nome, como se um sinal de alarme tocasse em algum ponto de sua memória.
— É. Esse capitão Fielding explicou que, na verdade, a mãe estava bem, a caminho da recuperação, e que Demetria  havia sido chamada por causa do pai. Contaram-lhe uma história vaga de que os negócios dele tiveram uma súbita reviravolta e que, embora houvesse a intenção de ele encontrá-la ali, precisara partir antes que ela chegasse. Acho que lhe disseram que lorde Lovato estava sendo perseguido por autoridades e que desejava que Demetria  fosse ao encontro dele. Ele teria contratado esse tal de Fielding e a irmã para levá-la em segurança. — A expressão de lady Mowbray denotava menosprezo à medida que prosseguia: — Naturalmente, Demetria  não passava de uma criança e foi facilmente enganada; ouso dizer que, de uniforme, esse capitão Fielding tinha uma figura elegante e imponente. A garota foi sem protestar. Viajaram por dois dias, supostamente desencontrando-se do pai dela aqui e ali, até que chegaram a Carlisle onde o capitão deixou a irmã e Demetria  sozinhas em uma estalagem e partiu sob a desculpa de que estava indo ao encontro de lorde Lovato. Ao retornar, Fielding contou que a família dela estava à beira da ruína e que a única maneira de evitar a pobreza seria que ela se casasse com ele, o que seu pai desejava que fizessem imediatamente.
— Como um casamento salvaria a família da ruína? — indagou Joseph , franzindo a testa.
— Não sei ao certo. — Lady Mowbray voltou-se indagativa para Mikey: — Você tem conhecimento do que ele pretendia?
— Creio que tem algo a ver com a herança que Demetria  receberia por parte do avô materno somente quando se casasse. Uma vez casada, ela teria direito à herança, e as supostas dívidas do pai poderiam ser pagas, salvando a família.
— Hum. — Todos permaneceram calados por um momento, e depois Joseph  perguntou: — Desconfio que esse Fielding se ofereceu como um mártir disposto a ajudá-la naquele momento de necessidade.
Lady Mowbray assentiu com a cabeça, comentando com um leve sorriso irônico:
— Que bondade a dele, não?
— Muita! — revidou Joseph .
— Então eles partiram para Gretna Green — intrometeu-se Mikey, em tom animado. — Casaram-se sem proclamas nem padre, diante de uma prostituta, de um ladrão e de um ferreiro, viajando, em seguida, para Calais em lua-de-mel.
— As testemunhas foram o dono de uma taberna, um alfaiate e o ferreiro — corrigiu lady Mowbray em tom árido. — E eles nunca chegaram a Calais, foram detidos nas docas. Minha nossa — acrescentou com um toque de malícia —, é interessante como os boatos se misturam aos fatos, não?
Joseph  achava graça como um olhar de lady Mowbray conseguia desconcertar o primo; procurando desanuviar rapidamente a tensão, perguntou:
— Quem os deteve?
— O pai dela, naturalmente. Quer dizer, não foi bem o pai. Depois que a menina partiu, a tia recuperou bom senso suficiente para ficar preocupada com a falta de identificação da carruagem e enviou uma mensagem a lorde Lovato, pedindo notícias da esposa e comentando seu temor de que algo estivesse errado. Lovato contratou vários homens para dar buscas da menina em Gretna Green e, posteriormente, para investigar sobre o barco em que haviam sido feitas as reservas para Calais. Parece que Fielding havia dito a ela que o pai os encontraria lá, mas os enviados do pai acabaram por detê-los, explicaram que tudo não passava de uma trapaça e levaram a humilhada menina de volta. Segundo o que dizem ela ficou absolutamente perturbada.
— E o que aconteceu a Fielding? — indagou Joseph , pensando na injustiça que a jovem havia sofrido. Obviamente nada daquilo era culpa dela.
— Bem, primeiro ele também voltou — explicou lady Mowbray. — Estava convencido de que o pai de Demetria  não poderia fazer nada contra ele. Estavam casados, afinal de contas. O pai de Demetria , porém, era um homem astuto. Conseguiu que Fielding fosse condenado sob a acusação de raptar uma menor e providenciou a anulação do casamento. Levou também a filha imediatamente para o campo para afastá-la do escândalo. Não que isso tenha ajudado muito — acrescentou, dando um suspiro.
— Por que diz isso? — Joseph  perguntou, curioso.
— Ora, porque o fato de não estar aqui não conseguiu evitar a maledicência — lady Mowbray explicou, pesarosa. — O caso era picante demais para ser abafado. Rendeu bastante. Especulou-se até que o casamento tivesse sido consumado diante do descaramento de Fielding em voltar. E o fato de o pai tê-la levado embora fez com que as pessoas se perguntassem se não era para esconder um possível fruto desse casamento relâmpago.
— E houve esse fruto? —Joseph  não conteve a pergunta.
— Ninguém sabe — Mikey aparteou. — Esta é a primeira vinda dela a Londres depois do acontecido e isso já faz dez anos.
Joseph  olhou inquisidor para a mãe que parecia estar melhor informada sobre os desdobramentos do caso até aquela data. Para seu desapontamento, porém, ela simplesmente deu de ombros e disse com evidente relutância:
— E possível. Depois do casamento, eles passaram uma noite em uma estalagem, embora as reservas tivessem sido feitas em quartos separados. O tal do barco zarparia só no dia seguinte ao casamento.
— E Fielding? — Joseph  perguntou.
— Ele fugiu antes que fosse marcado o julgamento. Lady Witherspoon me contou que ele retornou à Inglaterra alguns anos depois e acabou sendo capturado. No julgamento foi considerado culpado e sentenciado a cinco anos de prisão em Newgate. Desde então não se soube mais dele.
Fez-se um silêncio entre eles. Joseph  estava perdido em seus pensamentos, digerindo a revolta de que o breve casamento de Demetria  pudesse ter sido consumado. Com esse pensamento na cabeça, ele percorreu o olhar pelo salão, inconscientemente buscando a jovem e a madrasta.
— Elas saíram logo depois daquela cena ridícula na pista de dança — disse lady Mowbray, lendo seus pensamentos.
Joseph  olhou para a mãe espantado, viu o brilho dos olhos dela e percebeu sua esperança de que ele estivesse interessado. E, sim. Ele estava interessado.
Entre a conversa que tivera com Demetria , enquanto estavam sentados, e as cinco músicas que sua mãe dizia tê-los visto dançar, não havia decorrido mais de meia hora. Mas pareciam-lhe perfeitos os momentos em que estiveram juntos. Ele havia sorrido mais nesse curto espaço de tempo do que em todos aqueles anos desde que se ferira. Pela primeira vez sentira-se inteiro e sem defeitos.
Qualquer mulher que o tivesse feito sentir-se daquele maneira era merecedora de seu interesse e, sim, Joseph  tinha de admitir a si mesmo, estava definitivamente interessado, o que agradaria sua mãe ao extremo, pensou. Havia, porém, um problema. O mesmo motivo que permitira que relaxasse na presença dela era também a fonte do problema. Demetria  não conseguira vê-lo bem, mas isso era temporário. Sua preocupação era o que aconteceria quando o enxergasse direito e visse que horror era o homem com que havia falado e dançado. Como ela reagiria? Será que ela se encolheria de medo como se ele fosse um monstro? Desmaiaria horrorizada à mera visão dele?
Só de pensar em cada uma dessas alternativas, sofria.
— Quer que eu descubra para você mais alguma coisa sobre essa jovem? — lady Mowbray perguntou, tirando Joseph  de suas reflexões.
Ele fitou a mãe, incapaz de responder. Seu coração dizia que sim, mas sua mente o atormentava de medo.
Subitamente irritado com o assunto, Joseph  virou-se sem responder e caminhou em direção à porta. Tivera o suficiente da chamada alta sociedade por uma noite.
— Você está proibida de voltar a falar com lorde Mowbray.
Na escuridão da carruagem, o olhar de Demetria  se dirigiu à silhueta da madrasta.
— É esse o nome do cavalheiro com quem eu estava dançando? — Demetria  perguntou, somente então, dando-se conta de que nem o nome dele sabia. Será que ele sabia o dela?
— É! — foi a resposta seca de Taylor, rangendo os dentes. — Lorde Joseph Jonas, o conde de Mowbray. E você mantenha-se bem longe dele.
Demetria  hesitou, em dúvida se seria prudente perguntar à madrasta por que estava tão zangada, mas não conseguiu se conter e a pergunta escapou-lhe dos lábios:
— Mas por que devo ficar longe dele? Ele se comportou como um perfeito cavalheiro e, se é o conde...
— Ele não se comportou como um perfeito cavalheiro — Taylor a contradisse. — Estava dançando muito junto de você quando não deveria nem ter se aproximado sem a devida apresentação.
Demetria  mordeu os lábios diante dessa afirmação. Realmente não tinha sido muito adequado de nenhum dos dois.
— Mowbray foi muito farrista quando jovem — prosseguiu Taylor. — Estragou a vida de muitas jovens, coitadas. Não é para menos que Deus achou justo comprometer sua aparência.
Demetria  engoliu o protesto que ia fazer. Sabia que não seria bom abrir a boca.
— Mantenha-se bem longe dele. Ele não tem qualquer boa intenção com você. Só vai brincar com seus sentimentos e causar ainda mais dano à sua reputação. Seu pai conta comigo para que você faça um bom casamento. Nunca me perdoaria se eu permitisse que você se envolvesse com aquele farrista em um novo escândalo.
Demetria  suspirou infeliz diante dessa sentença, mas permaneceu calada, voltando os olhos para a escuridão da noite cortada pelo brilho efêmero das luzes ao passar da carruagem. Não valia a pena discutir. Engoliu então a raiva, fingiu estar distraída e rememorou os momentos que estivera com Mowbray.
Joseph Jonas, conde de Mowbray, repetiu mentalmente, considerando que não poderia haver nome mais adequado a ele. Como ele havia sido agradável. Tinha uma impressão completamente diferente de um conde. Os poucos que havia conhecido até então mostravam-se arrogantes e frios com ela, mas Joseph  fora doce e paciente, compreensivo e encorajador. Demetria  não conseguia esquecer o som da voz, do hálito com um leve aroma de fumo, a firmeza dos braços em volta de sua cintura quando dançavam. Sentira-se tão segura... Era difícil de acreditar que ele fosse um devasso, um corruptor de donzelas.
Um suspiro profundo da madrasta interrompeu seus pensamentos. Ela procurou fixar os olhos na figura embaçada no banco oposto.
— Se ao menos você enxergasse um pouco — Taylor lamentou de súbito —, eu não precisaria me preocupar com suas possíveis fantasias sobre ele.
— Por quê? — Demetria  indagou cheia de curiosidade, refreando o ímpeto de dizer que enxergaria muito bem se tivesse seus óculos de volta.
— Porque ele é tão feio quanto seus pecados — Taylor teve o prazer de dizer. — Ele era um dos homens mais atraentes da cidade, mas participou de uma batalha da Guerra da Sucessão Espanhola e foi gravemente ferido no rosto, que ficou com uma cicatriz horrível. Ele é o assunto do momento agora. Ninguém acreditava que ele ousasse aparecer com o rosto desse jeito.
— Somos o par perfeito, então — murmurou Demetria . — Dois defeituosos apontados e comentados por todos.
— O que é isso? — Taylor reagiu brava.
— Nada. — Demetria  virou o rosto, dando um suspiro profundo.
A carruagem percorria as ruas da cidade que lhe pareciam uma longa mancha escura. Nada do que a madrasta lhe dissera diminuíra Mowbray a seus olhos. Simplesmente não acreditava que Mowbray lhe fizesse mal algum e sabia que ele não era tão feio como a madrasta o pintara. Tinha visto a cicatriz que corria de um lado de seu rosto quando ele se aproximara mais para falar com ela. Embora não enxergasse direito, não lhe parecera tão horrível e o outro lado do rosto era perfeito. Ele era incrivelmente atraente. Mas não contestaria a madrasta. 

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