Uma flor entre
espinhos, é um anjo entre espinhos…
-
E às vezes, Miley, se nascesse um bebê com alguma má formação, os pais
espartanos se limitavam a atirar a criança recém-nascida por uma janela próxima
ou do alto de um penhasco próximo para livrar-se dela. Sim, vejo que você está
devidamente escandalizada, mas meu tio Berton contava as histórias daqueles
temíveis guerreiros de tempos remotos, e tenho certeza que não exagerava seu
relato só para me agradar. Ele tinha a obrigação de contar aquelas histórias
sem mentir, se é que você me entende.
-
Como eram as damas espartanas? Seu tio Berton chegou a contar alguma coisa a
respeito delas? - perguntou Miley com a voz cheia de interesse.
A
irmã de Joseph estava sentada na beira de sua cama, fazendo tudo o que podia
para não atrapalhar, enquanto Demétria ia mudando de lugar os móveis de seu
quarto. Miley deixou de tentar convencer Demétria de que não era comum que ela
trabalhasse como se fosse uma das criadas de serviço. Sua nova companheira era
um tanto teimosa, e tratar de discutir com ela não servia de nada.
Haviam-se
passado mais de três semanas desde que Demétria havia confrontado Miley. Uma
vez que Miley lhe contou a verdade a respeito de sua terrível provação, a dor e
a culpa realmente tinham diminuído. Demétria estava certa a respeito daquilo.
Não pareceu se sentir escandalizada pela história, e o mais estranho de tudo
era que aquilo tinha ajudado Miley tanto quanto contar o ocorrido. Demétria
simpatizava com Miley, mas não tinha pena dela.
Agora
Miley sempre seguia as indicações de Demétria, confiando que ela sabia o que
seria melhor para ela. Aceitava o fato de que o passado não podia ser apagado e
tentava deixá-lo trás, tal como Demétria sugeria que fizesse. Aquilo era mais
fácil de dizer que de fazer, é claro, mas a amizade de Demétria, que tão poucas
restrições colocava e tanto estava disposta a dar, ajudava Miley a afastar os
problemas de sua cabeça. Fazia uma semana que por fim tinha começado o fluxo
mensal de Miley, e essa era uma preocupação a menos a incomodá-la.
Demétria
tinha aberto um mundo novo para Miley. Contava as histórias mais maravilhosas.
Miley estava realmente impressionada com a quantidade de informação que havia
na memória de Demétria, e aguardava com impaciência a história nova de cada
dia.
Agora
Miley sorria quando observava Demétria. Sua amiga era um espetáculo. Havia um
pouco de terra na ponte de seu nariz e seu cabelo, embora estivesse preso atrás
de seu pescoço com um pedaço de fita azul, ia ganhando gradualmente um pouco de
liberdade daquele laço.
Demétria
deixou de varrer o pó de um canto e se apoiou no cabo de sua vassoura.
-
Vejo que consegui despertar seu interesse - observou. Ela fez uma pausa para
afastar uma mecha de sua face, criando uma nova marca de pó em cima de sua
testa, e então continuou sua própria história -. Pois eu acredito que as damas
espartanas certamente não deviam ter nenhum senso do decoro. Tinham que ser tão
horríveis como seus homens, Miley. Como poderiam viver bem com eles se não
fossem?
Miley
respondeu à pergunta com uma risadinha. O som encheu de ternura o coração de
Demétria. A transformação que ocorreu com a irmã de Joseph não podia ser mais
prazerosa. Agora havia um novo brilho em seus olhos, e sorria com muita
frequência.
-
Agora que chegou o novo sacerdote, temos que ter muito cuidado de não falar
desta maneira diante dele - sussurrou Miley.
-
Ainda tenho que conhecê-lo - respondeu Demétria -. Embora tenha muita vontade,
porque já era hora de os homens da família Wexton terem um homem de Deus
cuidando de suas almas.
-
Eles costumavam ter - disse Miley -. Mas quando morreu o padre John, e depois
que a igreja pegou fogo, ninguém fez nada a respeito - encolheu os ombros e
disse -: conte-me alguma coisa mais sobre os espartanos, Demétria.
-
Bem, as damas provavelmente começavam a engravidar aos doze anos ou algo assim,
embora isso seja uma hipótese de minha parte e não um juízo saído dos lábios do
meu querido tio. O que sei certamente, porém, é que as espartanas levavam mais
de um homem para suas camas.
Miley
soltou uma exclamação abafada, e Demétria assentiu, profundamente satisfeita
pela reação de sua amiga.
-
Mais de um de uma vez? - perguntou Miley, sussurrando a pergunta e depois
enrubescendo de vergonha.
Demétria
mordiscou seu lábio enquanto pensava se realmente seria possível tal coisa.
-
Não acredito - afirmou finalmente. Suas costas estavam voltadas para a porta, e
Miley tinha sua atenção concentrada na amiga. Nenhuma das duas percebeu que
Joseph estava parado no vão da porta.
Ele
pretendia anunciar sua presença, quando Demétria voltou a falar.
-
Não acredito que seja possível deitar de costas com mais de um homem de uma vez
- admitiu.
Miley
soltou uma risadinha, Demétria encolheu os ombros e Joseph, que já tinha ouvido
a maior parte da explanação de Demétria sobre os espartanos, virou os olhos
para o céu.
Demétria
tinha apoiado a vassoura na parede e agora estava ajoelhada diante da arca de
Miley.
-
Teremos que esvaziar isto se formos movê-lo pelo quarto - disse.
-
Primeiro tem que terminar sua história - insistiu Miley -. Conte as histórias
mais incomuns, Demétria.
Joseph
preparava-se para voltar a interromper, mas em seguida descartou a ideia. Para
falar a verdade, sua curiosidade também tinha sido capturada.
-
Em Esparta não existia nada, nem remotamente parecido, ao celibato - disse
Demétria -. Ora, era considerado um crime não se casar! Hordas de mulheres
solteiras tomavam as ruas. Procuravam homens solteiros e, quando os
encontravam, caiam sobre eles.
-
Caiam sobre eles? - perguntou Miley.
-
Sim, caiam sobre o pobre homem e o atingiam até deixá-lo reduzido a uma massa
ensanguentada! - gritou Demétria, cuja cabeça tinha desaparecido por completo
dentro da arca -. É verdade o que lhe estou dizendo - acrescentou.
-
Que mais? - perguntou Miley.
-
Sabia que os jovens eram trancados em um quarto às escuras com mulheres que
nunca tinham visto à luz do dia, e que se supunha que eles deviam…? Bem,
imagino que entenda a que me refiro - concluiu.
Demétria
inalou ar e espirrou por causa do pó que estava dentro do baú.
-
Algumas das mulheres tinham bebês antes de chegarem a ver o rosto de seus
maridos. - Então se levantou, e bateu com a cabeça na tampa da arca e se
apressou em tirar a fita -. Já sei que isto vai soar horrível, mas vou lhe
dizer uma coisa: quando penso em seu irmão Joseph, posso imaginar sua lady
Eleanor preferindo um quarto às escuras.
Demétria
fez aquela declaração como uma brincadeira. Miley deixou escapar um suspiro de
desânimo. A irmã de Joseph acabava de perceber que ele estava apoiado no marco
da porta.
Demétria
interpretou equivocadamente a reação da Miley, e em seguida mostrou seu pesar.
-
Este é comentário comum que eu fiz - anunciou - porque Joseph é seu lord e
também seu irmão, e eu não tenho direito algum de zombar dele na sua frente.
Peço que me perdoe.
-
Desculpas aceitas.
Aquelas
palavras eram de Joseph que outorgava seu perdão. Demétria ficou tão surpresa
pelo retumbar de sua voz que bateu a cabeça novamente na arca quando se virou para
encará-lo.
-
Há quanto tempo está aí? - perguntou, ruborizando-se de puro constrangimento.
Ela se levantou, virando-se para ele.
Em
vez de lhe responder, Joseph se limitou a permanecer onde estava e a deixa-la
cada vez mais nervosa. Demétria alisou as rugas de seu vestido, percebeu que
havia uma grande mancha em cima de sua cintura e cruzou imediatamente suas mãos
na frente dela. Uma mecha de cabelo se balançava na frente de seu olho
esquerdo, mas se mexesse a mão para afastá-lo, então sem dúvida Joseph veria o
desastre que tinha feito com seu vestido, não é?
Demétria
precisou lembrar a si mesma que ela era apenas sua prisioneira e ele seu
guardião. Que diferença fazia se ela estava com um aspecto lamentável ou não?
Separou a mecha de cabelo do seu campo de visão com um sopro e lutou para dar
um olhar sereno a Joseph.
Fracassou
miseravelmente e Joseph, sabendo o que se passava na mente de Demétria, sorriu
ante seu fracasso. Para Demétria era cada vez mais difícil ocultar seus
sentimentos. Aquele fato o agradou quase tanto como sua desgrenhada aparência.
Demétria pensou que ele estivesse sorrindo do lamentável aspecto de seu
vestido. Joseph reforçou sua crença submetendo-a a uma minuciosa inspeção. Seu
olhar foi lentamente do alto da cabeça de Demétria até o pó que cobria seus
sapatos. Seu sorriso foi-se alargando pouco a pouco até que aquela covinha tão
atraente voltou a aparecer em sua bochecha.
-
Suba para os seus aposentos, Demétria, e não saia dali até que eu vá vê-la.
-
Posso terminar esta tarefa primeiro? - perguntou Demétria, tentando fazer com
que sua voz saísse a mais humilde possível.
-
Não, não pode.
-
Joseph, Miley queria trocar a disposição dos móveis do quarto dela para que
parecesse mais…
Deus,
estava a ponto de lhe dizer que Miley queria que seu quarto fosse tão acolhedor
como o quarto da torre! Então Joseph descobriria o que ela estava fazendo, e
provavelmente ficaria furioso.
Demétria
olhou para ver o que Miley estava fazendo. A pobre jovem torcia suas mãos e
mantinha os olhos cravados no chão.
-
Miley, você esqueceu de dar uma saudação adequada a seu irmão – ela a
incentivou.
-
Bom dia, milord - Miley murmurou imediatamente. Não levantou o olhar para
Joseph.
-
Seu nome é Joseph. Senhor destas terras ou não, ele é seu irmão.
Então
Demétria se virou para Joseph e o fulminou com o olhar. Era melhor que ele não
gritasse com sua irmã.
Joseph
arqueou uma sobrancelha quando Demétria franziu o cenho. Quando ela indicou,
com uma vigorosa inclinação de cabeça, que ele fosse até Miley, Joseph encolheu
os ombros. Não tinha a menor ideia do que Demétria estava tentando lhe dizer.
-
E então? Será que você não vai saudar sua irmã, Joseph? - ela questionou.
O
suspiro de Joseph ricocheteou nas paredes.
-
Você está me dando ordens? - perguntou.
Parecia
bastante irritado. Demétria encolheu os ombros.
-
Não vou permitir que você assuste sua irmã – disse, sem poder se conter.
Joseph
teve vontade de rir. Era verdade então, tal como Nicholas havia elogiado e como
Kevin tinha protestado: a tímida Demétria havia se convertido na protetora de
Miley. Uma gatinha estava tentando proteger outra, decidiu Joseph, exceto pelo
fato de que agora Demétria se comportava como uma tigresa. Um fogo azul ardia
em seus olhos e, oh!, como ela tentava esconder a raiva que estava sentindo
naquele momento.
Joseph
lançou um olhar que disse claramente a Demétria o que ele pensava sobre sua
ordem. Depois ele se virou para sua irmã e disse:
-
Bom dia, Miley. Sente-se bem hoje?
Miley
assentiu, e então elevou o olhar para seu irmão e sorriu. Joseph assentiu,
surpreendendo-se com o fato de uma saudação tão simples poder modificar as
maneiras de sua irmã.
Depois,
ele se virou para sair, determinado a se afastar o máximo possível de sua
frágil irmãzinha antes de permitir que Demétria chegasse a saber o que passava
por sua cabeça.
-
E Demétria não poderia ficar aqui e…?
-
Miley, peço que não discuta a ordem de seu irmão - interrompeu-a Demétria,
temendo que a paciência de Joseph estivesse a ponto de fazê-lo gritar -. Não
seria honroso - acrescentou com um sorriso de coragem.
Demétria
recolheu suas saias e se apressou em seguir Joseph, enquanto dizia por cima de
seu ombro -: tenho certeza que Joseph tem boas razões para dar essa ordem.
Ela
teve que correr para alcançar Joseph.
-
Por que tenho que voltar para a torre? – perguntou, assim que teve certeza de
que Miley não poderia ouvi-la.
Eles
tinham chegado ao patamar quando Joseph se virou para ela. Naquele momento ele
queria sacudi-la até que ela batesse os dentes, mas a mancha de pó que havia na
ponte do nariz de Demétria atraiu sua atenção. Joseph utilizou seu polegar para
tirá-lo dali.
-
Seu rosto está coberto de sujeira, Demétria. Sim, agora você não é perfeita.
Devo jogá-la por uma janela próxima que fosse alta o bastante?
Demétria
demorou um momento em entender sobre o que ele estava falando.
-
Os espartanos não jogavam a seus prisioneiros pela janela - ela respondeu -.
Eles apenas faziam isso com os bebês que tinham alguma má formação. Eram
grandes guerreiros com corações bem mesquinhos - acrescentou.
-
Governavam com o controle absoluto - disse Joseph, enquanto seu polegar ia
lentamente para o lábio inferior de Demétria, e ele não conseguiu evitar
passá-lo muito suavemente em sua boca -. Sem nenhum tipo de compaixão.
Demétria
era incapaz de se separar. Ela olhou nos olhos de Joseph enquanto ela tentava
manter aquela conversa.
-
Sem nenhum tipo de compaixão?
-
Sim, porque essa é a maneira como um líder deve governar.
-
Não é não - sussurrou Demétria.
Joseph
assentiu e disse:
-
Os espartanos eram invencíveis.
-
Você vê algum espartano agora, Joseph? - perguntou Demétria.
Ele
encolheu os ombros, embora não conseguisse evitar sorrir diante daquela
ridícula pergunta.
-
Podem ter sido invencíveis, mas agora estão todos mortos.
Deus,
a voz dela tremia! Demétria sabia muito bem a razão. Joseph estava olhando para
ela com muita intensidade, puxando-a para si muito lentamente.
Não
a beijou, o que foi uma decepção.
Demétria
suspirou.
-
Demétria, não vou me negar esse desejo por muito tempo - murmurou Joseph. Tinha
baixado a cabeça, e sua boca estava a poucos centímetros da dela.
-
Não vai? - perguntou Demétria, com o fôlego novamente entrecortado.
-
Não, não vou - murmurou Joseph. Ele parecia irritado, agora.
Demétria
sacudiu a cabeça sem entender nada.
-
Joseph, eu permitiria que você me beijasse agora mesmo - ela disse -. Não é
necessário que negar aquilo que você deseja.
A
resposta de Joseph àquela sincera confissão foi agarrar a mão dela e arrastá-la
pelas escadas da torre.
-
Não será prisioneira aqui por muito mais tempo - anunciou Joseph.
-
Então você admite que me trazer aqui foi um erro? - ela perguntou.
Joseph
pôde ouvir o medo que havia em sua voz.
-
Eu nunca cometo erros, Demétria.
Ele
não se incomodou em virar para trás para olhá-la, e não voltou a falar até que
chegaram à porta dos aposentos de Demétria. Quando Joseph alcançou a maçaneta,
Demétria bloqueou a porta apoiando-se nela.
-
Eu posso abrir minha própria porta - ela disse -, e não há nenhuma dúvida de
que você comete erros. Eu fui o maior erro de todos.
Ela
realmente não tinha nenhuma intenção de dizer aquelas palavras. Deus, na
verdade ela acabava de insultar a si mesma!
Joseph
sorriu. Era óbvio que ele percebia o erro que Demétria acabava de cometer.
Então ela a pôs de lado e abriu a porta do quarto. Demétria entrou correndo e
tentou fechar a porta atrás dela.
Joseph
não permitiu. Agora as coisas iam esquentar, pensou Demétria enquanto ia se
armando de coragem para enfrentar a reação de Joseph diante das mudanças que
ela tinha realizado ali.
Joseph
não podia acreditar no que estava vendo. Demétria tinha transformado a austera
cela em um convidativo ambiente. As paredes tinham sido limpas, e uma grande
tapeçaria de cor bege ocupava o centro da parede que estava em frente a Joseph.
A tapeçaria contava a história da última batalha da invasão de William; as
cores eram vívidas, as figuras dos soldados tinham sido costuradas com pontos
vermelhos e azuis. Era um desenho singelo, mas também muito agradável de se
ver.
A
cama estava coberta por uma colcha azul. No outro extremo do cômodo havia duas
cadeiras, ambas cobertas com almofadas vermelhas. As cadeiras tinham sido
colocadas de tal maneira que formavam ângulo com a lareira, e havia banquetas
diante de cada uma. Joseph viu uma tapeçaria inacabada apoiada em uma das
cadeiras. Fios marrons penduravam dela, roçando o chão. Os contornos da
tapeçaria já estavam bem costurados, assim que Joseph pôde reconhecer o que ia
ser. Era o retrato do lobo imaginário de Demétria.
O
músculo de seu queixo se contraiu. Duas vezes. Demétria não tinha certeza do
que aquilo significava. Ela esperou, seu gênio acumulava lenha em chamas para
uma resposta, para quando ele começasse a gritar com ela.
Joseph
não disse uma única palavra. Deu meia volta e fechou a porta atrás dele.
O
aroma de rosas o seguiu escada abaixo. Joseph conseguiu controlar seu
temperamento até que ele chegou à entrada da sala. Nicholas o viu e correu para
falar com ele. Sua voz estava cheia de uma impaciência juvenil quando
perguntou:
-
Lady Demétria ainda não recebe visitas esta manhã?
O
berro de Joseph pôde ser ouvido no alto da torre.
Nicholas
arregalou os olhos. Ele nunca tinha ouvido seu irmão gritar daquela maneira.
Kevin entrou no vestíbulo bem a tempo de ver Joseph partir.
-
O que o deixou tão furioso? - perguntou Nicholas.
-
Não o quê, Nicholas, mas quem - observou Kevin.
-
Eu não o entendo.
Kevin
sorriu e depois deu uma palmada no ombro de seu irmão.
-
Joseph também não, mas aposto que não vai demorar para entender.
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