terça-feira, 28 de novembro de 2017

O Amor é Cego Capitulo III parte 2

— Mas é claro, meu bem. Se Joseph está interessado em você, é com a maior satisfação que farei de tudo para ajudá-lo.
Demetria hesitou por um momento e corou, antes de se atrever a perguntar:
— Apesar do escândalo em que acabei envolvida, milady? Creio que ouviu falar a respeito...
Seguiu-se um longo silêncio. Mais uma vez Demetria desejou que pudesse ver o suficiente para poder controlar a própria expressão.
Tomando-lhe as duas mãos nas suas, lady Mowbray disse, de maneira solene:
— Ouvi falar, sim, minha querida, sobre seu breve casamento com o capitão Fielding. Em minha opinião, porém, você não teve culpa alguma. E, sinceramente, também não me importaria se tivesse. Você é a primeira jovem por quem Joseph mostra interesse nestes dez últimos anos. Ainda que você tivesse matado o arcebispo de Canterbury, eu o ajudaria também.
Cheia de admiração, Demetria estreitou os olhos na tentativa de enxergar melhor essa senhora que defendia com tanto ardor o filho.
— Agora venha, querida. Mary e eu ficaremos conversando aqui enquanto você estiver com Joseph. — Abrindo as portas francesas que davam para fora, passou o braço nas costas de Demetria, incentivando-a a sair do salão.
— Mas e se Taylor...
— Nós tomaremos conta de sua madrasta, não se preocupe. Lady Devereaux me devia um favor e fará o possível para mantê-la ocupada enquanto for necessário. Se não conseguir, eu mesma me incumbirei dela. Pode ir... A menos que você não deseje se encontrar com Joseph?
— Claro que desejo — Demetria respondeu prontamente, ao sentir um certo receio na voz de lady Mowbray.
— Bem, então vá.
Demetria atravessou um corredor ladeado de cortinas e parou hesitante. Não conseguia enxergar muito bem, mas pareceu-lhe haver uma trilha à sua frente. Começou a caminhar insegura quando, dentre as árvores, surgiu uma sombra que se projetou em sua direção.
— Que bom que você veio!
Demetria relaxou assim que ouviu a voz de Joseph. Sabia que ele não permitiria que se sentisse insegura, sozinha na escuridão.
— Então sua mãe deu um jeito de me separar de Taylor.
— Parece que sim — disse ele, sorrindo.
— Fiquei bastante surpresa de ela ter conseguido — Demetria confessou. — E mais ainda de ouvi-la dizer que não se incomoda com o escândalo de que fui vítima.
— Ah, é verdade, o escândalo... — Joseph murmurou. — Você precisa me contar o que aconteceu.
— Você não sabe nada a respeito? Demetria perguntou, preocupada. — Como sua mãe disse que tinha tido conhecimento, pensei que você também soubesse.
— De fato, sei o que me contaram, mas gostaria de ouvir de sua boca.
— Ah, na verdade não há muito a contar. — Demetria suspirou e comentou os detalhes de como fora ludibriada sob a alegação de que sua família precisava de ajuda.
— E esse capitão Fielding se dispôs ele mesmo a se casar com você para ajudá-la a salvar a família — Joseph concluiu em tom cáustico.
— Pois é. Eu pensei que ele estivesse sendo extremamente bondoso até que mais tarde descobri toda a verdade. — A expressão de Demetria era séria. — Não bastasse o escândalo que causou, foi tudo muito cansativo.
— Você achou maçante casar? —— Joseph perguntou, brincando, e Demetria  deu de ombros.
— Bem, nada houve de casamento. Ficamos na frente um ferreiro negro, na presença de um outro casal, dissemos: “aceito” e assunto encerrado.
— E a noite de núpcias? — Joseph chegou ao ponto que desejava, não contendo a tensão na voz.
Demetria fechou o cenho.
— Não houve noite de núpcias. O casamento não poderia ter sido anulado se tivesse havido.
— Quer dizer que ele nem tentou se...?
— Ele foi me procurar, sim, mas havíamos viajado muito e eu estava bastante exausta. — Demetria abaixou a cabeça para esconder o rosto rubro. Sentia-se muito embaraçada com esse tipo de questionamento. — Ele não me forçou a nada. Foi dormir em outro quarto e me deixou sozinha.
A tensão que Joseph sentia da mãozinha pousada em seu braço relaxou. Demetria o olhou indagativa, desejando, como sempre, poder ver a expressão dele.
— Fico feliz em saber — murmurou Joseph, imediatamente acrescentando: — Não que eu fosse culpá-la ou desmerecê-la se o casamento tivesse se consumado. Mas fico muito contente de saber que não se consumou.
Demetria refletiu um pouco e suspirou.
— A cidade toda pensa que sim, não é?
— Acho que é a opinião que prevalece. O fato de seu pai tê-la levado para o campo para evitar o escândalo é compreensível, mas mantê-la afastada por tanto tempo suscitou não só esse boato, como também o de que havia sido gerado um filho, que você estava criando no campo.
Demetria ficou de queixo caído e voltou-se para ele horrorizada:
— É isso o que todos pensam?
— Talvez não devesse ter lhe contado — Joseph ponderou, com evidente arrependimento.
— Não. É melhor saber o que se passa do que ficar na ignorância. O único problema é que não tenho como acabar com o diz-que-diz.
—Acho não que tem jeito mesmo. Talvez a única saída seja aprender a conviver com o falatório e não ligar para o que as pessoas pensam.
— Será que isso é possível? — Demetria perguntou, com ar triste.
— Não sei. Você se importa com o que pensam? Você me pareceu divertir-se tanto ao me contar sobre as atribulações causadas pela falta de óculos que achei que não ligasse para esse tipo de coisa.
— Normalmente não ligo — ela concordou. — Mas só eu sei o que aconteceu e não aconteceu. Sei também do meu caráter. Por isso não aguento quando cochicham atrás dos leques para que eu ouça. Preferia que falassem na minha cara, para que eu pudesse me defender, mas, fora isso, nunca realmente me incomodou o que os outros pensam, com exceção daqueles a quem quero bem.
Joseph apertou a mão que repousava em seu braço e depois fez com que Demetria parasse, dizendo:
— Aqui estamos.
Demetria voltou-se e estreitou os olhos, tentando visualizar melhor a pequena clareira para onde ele a levara. No chão, havia um grande quadrado de diferentes cores e padrões, uma colcha talvez, parecendo haver diferentes itens sobre ela.
— Um piquenique? — ela arriscou, em dúvida.
Joseph riu e a fez sentar-se em um dos cantos da colcha.
— Sim. Lembrei-me que você disse que sua madrasta não a deixa comer e beber em público, em ocasiões como esta, e não quero que passe nem fome e nem sede. Dei então um jeito de remediar a situação. Espero que goste do que eu trouxe.
Demetria já não enxergava direito e, para complicar ainda mais sua visão, ficou com os olhos cheios de lágrimas, percorrendo assim, quase sem ver, o olhar por todos os itens a sua volta.
Imensamente comovida com tanto carinho e consideração, Demetria  ó poderia achar Joseph  o mais doce dos homens.
— E... — Ele mostrou alguma coisa de cor clara, levemente florida. Demetria piscou, confusa. — Seu babador, milady — disse, brincando. — Para evitar qualquer incidente que possa nos denunciar. Faça de conta que sou um de seus criados e use-o. Posso ajeitá-lo para você?
Demetria não podia acreditar em mais aquele gesto atencioso. Entre lágrimas e risos, concluiu que Joseph era mesmo maravilhoso.
— É um babador improvisado — continuou Joseph, colocando um enorme guardanapo em torno do pescoço dela. — Mas foi o que de melhor encontrei para que não haja risco de sujar sua roupa.
— Obrigada — Demetria agradeceu, observando Joseph também se acomodar na colcha. — Está tudo perfeito. E eu estou faminta.
— Vamos comer então — ele propôs satisfeito, dissertando sobre o cardápio. —Temos frango assado, presunto, queijo, pão, geleia e frutas.
O clima entre eles não poderia ser melhor. Comeram, conversaram e riram muito. Demetria tinha a sensação de aquele estar sendo o momento mais feliz de sua vida. Já haviam terminado de comer a algum tempo; ela ria de uma história que Joseph acabara de contar sobre os problemas com um antigo mordomo muito briguento, quando percebeu que ele endireitava e levantava a cabeça para olhar sobre seus ombros.
Ambos pararam de rir e um vulto rosa pálido se aproximou deles. Demetria deu-se conta de que era Mary antes que a jovem dissesse, quase se desculpando:
— Sua mãe pediu-me que viesse lhes dizer que Demetria precisa entrar agora.
Por um momento fez-se silêncio entre eles, rompido então por Joseph.
— Vou levá-la imediatamente. Agradeça a minha mãe, muito obrigado a você também, Mary, pela ajuda desta noite.
— Fico contente que tenham aproveitado. Você tem tido muito pouca distração, primo — Mary comentou, com doçura, deixando-os em seguida.
Demetria voltou-se para Joseph, com pena de que aqueles momentos chegassem ao fim. Ficaram ambos calados. Ele levantou-se e estendeu-lhe a mão para que também se levantasse. Ao chegarem perto da porta onde haviam se encontrado, ela o encarou, séria.
— Obrigada, milorde, adorei o piquenique. Não me divertia tanto desde que... bem, desde a última vez que nos vimos. Sinto-me muito afortunada por ter um amigo como você.
Ela percebeu que Joseph enrijecera o corpo ante suas palavras, mas a reação dele logo ficou clara ao externar seu desapontamento:
— Um amigo, Demetria? É assim que você me vê?
Ela sentiu-se corar e abaixou a cabeça, murmurando:
— Não quis ter a pretensão de achar que seu...
Joseph interrompeu as palavras dela, colocou a mão em seu queixo para levantar-lhe o rosto e, sem que esperasse, cobriu-lhe a boca com a sua.
Demetria ficou imobilizada ao contato dos lábios dele, que deslizaram suaves, mas firmes sobre os dela, em uma carícia gentil e intensa. Ela entreabriu ligeiramente os lábios num suspiro, possibilitando que ele introduzisse a língua em sua boca.
Alarmada, Demetria congelou por um momento diante de tal intrusão, sentindo-se tensa. O movimento da língua de Joseph dentro de sua boca, porém, era tão delicado e tão doce que seu corpo relaxou e seus lábios se entreabriram um pouco mais em total entrega.
Apesar de ter se casado, Demetria nunca havia sido beijada. Ela até achava que beijar era esquisito, isso porque nunca havia experimentado. Sentia agora o prazer e a excitação percorrer-lhe o corpo. Agarrada aos braços dele para manter o equilíbrio, de início ela somente se deixou beijar, correspondendo depois com igual ardor. Joseph soltou um gemido e suas mãos deslizaram pelo corpo de Demetria, pressionando-a contra seu próprio corpo enquanto seus lábios continuavam exigindo beijos cada vez mais profundos.
Demetria passou os braços em torno do pescoço dele, quase estrangulando-o na tentativa de tê-lo ainda mais junto de si. Ela sentiu uma das mãos de Joseph descer por suas costas, apertando-a ainda mais até que ela roçou em uma parte enrijecida do corpo dele, sem que, naquele momento, se desse conta do que era. Então, de repente, ele a soltou e afastou-se.
Demetria o fitou às cegas, consciente de que estava arfando. Levou um minuto para perceber que a respiração de Joseph estava acelerada também.
Com a voz rouca, Joseph finalmente lhe disse:
— É melhor você entrar agora.
Abriu a porta e delicadamente passou a mão na cintura dela para que ela entrasse, tomando cuidado para manter uma certa distância entre ambos; caso contrário, não conseguiria resistir à tentação de abraçá-la outra vez. Prometeu então:
— Logo a verei novamente.
Demetria ouviu a porta ser fechada e soltou um longo suspiro. Fechou os olhos por um minuto e seus lábios se abriram em um doce sorriso.
Logo a verei novamente. Que quatro palavrinhas mais lindas, pensou, e sentiu outras mãos envolvê-la.
— Você se divertiu?
— Claro que sim. Veja só o sorriso dela.
Demetria teve um sobressalto, ao ouvir a voz de lady Mowbray e a resposta de Mary. Ela não havia notado que as duas mulheres estavam próximas da porta quando entrou. Só temia que tivessem testemunhado o beijo que Joseph lhe dera, mas nenhuma das duas teceu qualquer comentário ou a repreendeu por ter aceito o beijo. Havia riso em suas vozes enquanto elas a especulavam, ajeitando-lhe o penteado e alisando pequenas partes enrugadas de seu vestido. Lady Mowbray então acompanhou-a até o salão de baile.
Já estavam próximas ao salão quando a mãe de Joseph se voltou para olhá-la de frente.
— Demetria, minha querida. — Ela hesitou, respirou fundo e pegou a mão de Demetria. — Nunca vi meu filho tão feliz como tem estado nesse curto período em que a conheceu. Quero agradecer a você por isso. Não importa o que venha a acontecer, muito obrigada.
— Ele é um homem muito especial — Demetria murmurou baixinho, corando.
— Pena que nem todos o vejam assim — complementou lady Mowbray, com expressão de tristeza. — Algumas pessoas não aguentam nem passar perto da cicatriz de seu rosto.
— Como minha madrasta — Demetria sugeriu.
— Ela é apenas uma de muitas — lady Mowbray afirmou, dando um pequeno suspiro. — Vamos entrar. Sua madrasta deve estar pisando em ovos a esta altura.
Pegando-a pelo braço, lady Mowbray a conduziu pelo salão de baile.
— Ei-las! — exclamou Taylor, já em pé. — Ficaram duas horas conversando.
Demetria não deixou de notar o tom de raiva subjacente às palavras da madrasta.
— Culpa minha — lady Mowbray disse, sorrindo. — As meninas se deram tão bem que não me doeu o coração interrompê-las.
— Muito bem, fico contente com isso — respondeu Taylor, mas Demetria percebeu que isso não a tranquilizara. Havia algo de errado.
— Agora desejo que em breve vocês venham tomar um chá comigo — convidou lady Mowbray, em tom alegre, não conhecendo Taylor o suficiente para perceber o que se passava em seu íntimo. — Vou convidar Mary também para que as meninas possam continuar a conversa.
— Será ótimo — respondeu Taylor, forçando um sorriso. — Até breve então. — Despediu-se lady Mowbray, com um aceno de cabeça, dando um apertãozinho na mão de Demetria.
Tão logo ficaram sozinhas, Taylor pegou Demetria pelo braço e apressou-a a sair dali.
— Onde estamos indo? — ela perguntou quando cruzavam o salão.
— Para casa — respondeu Taylor, rispidamente. Demetria mordeu o lábio, mas ficou quieta. Ao deixar a residência dos Devereaux, tiveram que aguardar por algum tempo pela carruagem, mas só quando estavam sentadas dentro dela e com a porta fechada Taylor disparou o ataque.
— Você estava vermelha demais quando voltou da visita a Mary. — A voz de Taylor era fria e contida.
Demetria permaneceu por um momento calada, sentindo-se inquieta.
— Estávamos sentadas ao lado da lareira. Lá estava muito quente.
— E seus lábios ainda estão inchados de beijar lorde Mowbray.
— Você viu. — Demetria congelou por dentro.
—Vi — Taylor confirmou furiosa. — Lorde Prudhomme queria falar comigo e fomos dar uma volta nos jardins. Vimos vocês voltando e ficamos observando perto das árvores como você se deixou agarrar por Mowbray como um animal e..
Taylor fez urna pausa repentina como se o assunto a perturbasse demais para continuar. Demetria, porém, mal notou, perturbada pela menção de Prudhomme e da volta no parque, recordando claramente o que testemunhara de tais passeios com outras mulheres.
— Como você permite que um homem a toque — vociferou Taylor. — Você tem um homem bom como lorde Prudhomme disposto a esquecer seu passado escandaloso e escolhe, uma vez mais, arruinar tudo. Desta vez com Mowbray.
— Prudhomme, um bom homem? — Demetria rebateu com espanto, lembrando-se no mesmo instante que não havia comentado nada do que vira com a madrasta.
— Sim, senhora, um bom homem — Taylor enfatizou. — E disposto a esquecer tudo: o escândalo, seus desastres e o beijo que viu.
— Quanta bondade dele, não? — Demetria ironizou. — E, em contrapartida, suponho que terei de esquecer os casos dele?
— O quê? Do que você está falando, menina? — Taylor quis saber, com exagerada curiosidade na voz. Demetria podia garantir que havia até pânico no tom dela. Como queria enxergar direito para poder ver a expressão de seu rosto!
— Estou falando dos casos dele com lady Havard e com lady Achard — respondeu, calmamente. — Na noite em que você me encontrou no jardim da casa dele, eu tinha acabado de vê-lo brincando com as duas senhoras.
— Como? — Taylor perguntou, áspera. — O que quer dizer com isso?
— Quase topei com ele e lady Achard no jardim naquela noite, mas me escondi entre os arbustos e ouvi o que diziam. Parecia que tinham acabado de fazer amor. Ele, jurando fidelidade, amaldiçoou a boa saúde de lorde Achard por impedi-los de assumir seu amor. Depois chegou lady Havard para avisar que lorde Achard estava no baile. Lady Achard saiu imediatamente dali, e Prudhomme passou a clamar seu amor por lady Havard, amaldiçoando da mesma maneira lorde Havard e, pouco depois, desapareceu sob a saia dela.
Seguiu-se um longo silêncio. Embora não pudesse ver expressão de Taylor, Demetria estava certa de que ela empalidecera e estava ainda mais certa de que a madrasta tinha algum tipo de envolvimento com Prudhomme.
— Você está mentindo — Taylor disse trêmula.
— Não estou, não — revidou Demetria com toda a calma e depois acrescentou: — E eu não estava sozinha, não fui a única pessoa a testemunhar tudo que lhe contei.
— Quem mais testemunhou?
Demetria hesitou. Já estava em apuros por causa de Mowbray e achara melhor não mencionar o nome dele antes. Por outro lado, se convencesse Taylor de que ela estava falando a verdade, talvez a madrasta parasse de empurrar Prudhomme para ela.
— Mowbray — disse, finalmente. — Pode perguntar a ele se não acredita em mim.
Demetria não viu a mão da madrasta levantar-se para dar-lhe um tapa, mas a dor que sentiu foi profunda e, com o impacto, sua cabeça foi jogada para o lado.
Erguendo-se ela levou a mão ao rosto e voltou-se lentamente para encarar a madrasta.
— Você não tocará mais nesse assunto — Taylor decretou. — E nunca mais verá Mowbray novamente. Nunca mais.
Demetria manteve-se firme e calada, mas queimava de raiva por dentro pelo acontecido.
A porta da carruagem foi aberta de seu lado. Sem notar, já haviam chegado em casa. Demetria quase tropeçou na saia em sua pressa de desembarcar. O lacaio segurou-a pelo braço para impedir que caísse. Ela murmurou um agradecimento e se afastou rapidamente, seguindo apressada pela trilha em direção à porta da frente.
Foulkes, ou alguém que ela julgou ser Foulkes, abriu a porta ao vê-la se aproximar. Ela subiu rapidamente as escadas, não vendo a hora de estar na privacidade e segurança de seu quarto, mas Taylor a alcançou.
— Demetria — sibilou a madrasta, apertando-lhe o braço no momento em que ia abrir a porta.
Respirando fundo, Demetria virou-se para enfrentá-la, mas desistiu, não desejando suscitar mais raiva nela.
— Nunca mais quero falar sobre esta noite — ela repetiu com firmeza. — E você também nunca mais verá lorde Mowbray de novo. Como pôde permitir que ele a tocasse... — Taylor ainda estava furiosa, com a respiração pesada, e fuzilava-a com os olhos. — Seu pai nunca me perdoaria se eu deixasse que um homem a prejudicasse. E Prudhomme também não será mais bem-vindo a esta casa. Ter a ousadia de cortejá-la enquanto...
A voz da madrasta vacilou. Demetria estava cada vez mais convicta de que ela tinha alguma coisa com Prudhomme. Se não estivessem tendo um caso, ele certamente deveria estar tentando. Era evidente o aborrecimento de Taylor.
Depois de um momento de silêncio, Taylor virou as costas e se dirigiu a seu quarto, batendo a porta.
Demetria soltou um suspiro profundo, sentindo a tensão do corpo aliviar-se, Ao entrar no quarto teve um sobressalto quando um vulto se aproximou para ajudá-la a entrar.
— Desculpe, milady — disse Joan. — não tive a intenção de assustá-la. Fiquei esperando que voltasse para ajudá-la a trocar de roupa.
— Está tudo bem, não se preocupe — Demetria retrucou, fechando a porta do quarto.
Joan começou a ajudá-la a se despir, mas havia algo de tenso nela. Passados alguns minutos, Demetria não se conteve e perguntou:
— O que há com você? Parece que quer me dizer alguma coisa, pois diga.
— Desculpe, milady — Joan murmurou, pondo finalmente para fora o que a incomodava: — Seu vestido está amassado, há uma marca em seu rosto. Parece que levou um bofetão. Seus lábios estão um pouco inchados e ouvi o que lady Lovato disse sobre lorde Mowbray. Está claro que houve alguma coisa entre a senhorita e ele, milady. Dizem que o coração dele tem uma cicatriz tão feia quanto o rosto e ele...
A voz de Joan ficou presa na garganta, e Demetria dirigiu-lhe um olhar de censura.
— Estou apenas preocupada, milady. A senhora é muito meiga e bondosa e ainda um pouco ingênua. Não queria que ele se aproveitasse disso.
Demetria deu-lhe as costas, consumida de raiva. Joseph só tinha demonstrado bondade e consideração para com ela. Fora um ouvinte atento e se apressara em providenciar tudo o que ela desejava e sentia falta. E não tinha tentado uma única vez se aproveitar dela. Demetria considerou por um momento dizer a Joan que isso não era da conta dela, mas Joseph merecia que ela o defendesse. Além disso, desejava ter pelo menos uma pessoa a seu lado, ainda que fosse a criada.
Sentando-se na cadeira da penteadeira para que Joan lhe soltasse e escovasse os cabelos, Demetria pigarreou e contou à criada como haviam sido seus encontros com Joseph, sem omitir qualquer detalhe.
— Ele parece maravilhoso — disse Joan, finalmente. — Não tem nada a ver com as histórias que as pessoas contam sobre ele.
— Ele é maravilhoso — confirmou Demetria, enxugando as lágrimas que insistiam em molhar seus olhos. Era ridículo, mas sentia-se extremamente grata que a criada tivesse uma boa impressão de Joseph.
— Bem — Joan deu seu endosso ao terminar de escovar os cabelos de Demetria —, acho que deve continuar a vê-lo. Se ele marcar um novo encontro, não deixe de ir.
— Mesmo? — perguntou Demetria ansiosa.
— Certamente — confirmou a criada, com firmeza, acrescentando: — Milady, não a tinha visto tão feliz em todo esse tempo em que trabalho aqui. Seus olhos se iluminam quando fala dele e seu sorriso fica ainda mais doce. É óbvio que está apaixonada por este homem.
Demetria piscou surpresa diante dessas palavras e permaneceu em silêncio. Joan puxou as cobertas da cama, ajudou-a a deitar-se e desejou boa-noite, saindo do quarto. As palavras da criada ficaram ecoando em sua mente.
Seria verdade, perguntou-se. Estaria mesmo apaixonada por ele?
Demetria não tinha certeza. Tudo o que sabia é que gostava de Joseph, que vivia entediada quando ele não estava por perto e ganhava vida nova quando ele aparecia. Joseph a fazia rir e gostava de conversar com ele e agora que a tinha beijado... Era só no que pensava, naqueles beijos e quando teria a oportunidade de beijá-lo novamente. Devia mesmo estar apaixonada. E era a sensação mais gostosa do mundo. Não via a hora de vê-lo de novo.
— Seu xale, milady.
Demetria ficou confusa quando Joan apareceu ao seu lado, estendendo-lhe um xale.
— Meu xale?
— Sim, a senhora não disse que estava sentindo frio e me pediu para pegá-lo? — Joan confirmou, abaixando-se para dar um safanão na saia de Demetria. — Acho que não conseguimos limpar todo o ponche derramado em seu vestido na noite do baile de Brudman. Talvez seja melhor trocá-lo.
— Trocá-lo? — perguntou Demetria abaixando-se para examinar a saia. Não que ela fosse enxergar qualquer coisa, mas tinha certeza de que aquele não era o vestido em que derramara o ponche. Aquele era verde.
— Vá logo, Demetria — disse Taylor irritada. — Leve-a para cima para se trocar, Joan. Ela não pode usar um vestido manchado em meu primeiro baile como anfitriã. Espero que ninguém tenha notado.
— Ninguém notou, milady — disse Joan, puxando Demetria que se levantou.
— Mas... — ela começou a dizer quando deixavam o salão de baile e foi calada por Joan. A criada não a deixou falar até chegarem ao hall.
— Joan, que história é essa? Este não é o vestido em que derrubei o ponche.
— Eu sei, milady, mas lady Lovato tem péssima memória e eu precisava tirá-la de lá.
— Por quê?
— Porque há um menino na porta com um bilhete para a senhora e se recusa a entregá-lo a outra pessoa.
— Nossa, o que será?
— Não sei, milady, mas foi uma sorte eu estar passando pela porta quando ia subir ao quarto, caso contrário Foulkes a teria aberto e sua madrasta ficaria sabendo.
Demetria ergueu as sobrancelhas. Foulkes era mesmo muito certinho e, sem dúvida, contaria a Taylor. Se por sorte fosse um recado de Joseph, nunca ficaria sabendo o conteúdo porque a madrasta pegaria o papel e o queimaria na frente dela.
— Será que é de Joseph? — Demetria perguntou a Joan, esperançosa. Não o via há uma semana, desde a noite do baile dos Devereaux, e já sentia falta dele.
— Não sei, milady, mas se for, deve avisá-lo para não enviar recados desse jeito. Diga-lhe que nas próximas vezes o menino procure por mim. Se o recado que o pobre garoto trouxer for para mim, não haverá suspeita alguma. Posso alegar que ele é meu irmão caçula.
Demetria correu a abrir a porta. Na varanda, um menino estava a sua espera.
— Esta é lady Demetria — disse Joan. — Pode entregar o bilhete agora.
O menino examinou Demetria. Tinha olhos enormes e o rosto muito sujo. Ele puxou o bilhete de dentro da camisa e o entregou.
— Me disseram.que eu ia ganhá uma moeda pelo trabaio.
— Ah! — Demetria voltou-se atrapalhada para Joan. — Minha bolsinha de moedas está em meu quarto.
— Pegue aqui. — Joan sacou uma pequena carteira das dobras de sua saia e deu uma moeda ao menino. — Pode ir agora.
Neste instante, Foulkes apareceu e se encaminhou na direção delas. Tirando o bilhete da mão de Demetria, a criada o manteve consigo, falando alto enquanto subiam a escada:
— Venha, é melhor tratar de mudar de roupa logo, milady.
Demetria esperou até estarem no quarto para abrir o bilhete. Como não conseguiria ler, pediu a Joan que o fizesse.
— Só está escrito encontre-me na fonte e assinado J.A.J.
— J.A.J.? É de Joseph — Demetria exultou. — Bem... Não vou me trocar?
Demetria estranhou que a criada começasse a empurrá-la para a porta.
— Depois — Joan disse em tom firme. — Se eu trocar sua roupa agora e Joseph amassar seu vestido como da última vez, vou ter de trocá-la de novo.
— Você tem razão — Demetria concordou, corando ao lembrar como o vestido ficara amassado. Talvez ele a beijasse novamente, imaginou, sentindo um friozinho na barriga à mera ideia de que acontecesse.
Joan levou-a para o andar de baixo pela escada de serviço. Verificou se o corredor estava livre e a fez sair pela porta da sala de jantar, o lugar mais adequado para evitar os visitantes e a criadagem. 
Parando à porta, voltou-se para ela:
— Acha que daqui consegue ir sozinha?


demorei muito? NAO RESPONDAM
podem curtir mais uma parte
bjemi

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

O Amor é Cego Capitulo III parte 1

— Que droga, primo! Onde vocês se meteram?
Demetria estremeceu de surpresa ao ouvir o comentário irritado de Greville, sobrepondo-se à voz suave de Joseph, que parou abruptamente de ler, à chegada da figura verde-amarelada.
— Então estavam aí! Deus do céu, faz quinze minutos que estou rodando a procura de vocês. Estamos atrasados. Fiquei de levar Demetria de volta depois de uma hora.
— Não acredito que já tenha passado uma hora — disse ela, desapontada. — Estava adorando a leitura de Joseph.
— A permissão foi só de uma hora? — Joseph perguntou com um sorriso amarelo, fechando o livro. — Por que tão pouco tempo?
— Quanto você acha que Taylor permitiria se, supostamente, só íamos dar um passeio de carruagem? — perguntou bravo Mikey, enquanto Joseph pegava a mão de Demetria para ajudá-la a se levantar.
— É, você tem razão — ele concordou, suspirando.
— Que livro é esse? — Mikey perguntou, mudando de assunto. — É um Pope?
— Isso mesmo. Demetria não consegue ler por causa da falta dos óculos, por isso resolvi ler para ela — respondeu Joseph meio constrangido.
Greville não podia acreditar que tal gesto partisse de seu primo Joseph, mas não teceu comentário algum para não deixá-los embaraçados. Em vez disso, dando-lhes às costas, apressou-os:
— Vamos, a carruagem está à nossa espera e não vejo hora de chegar em casa e trocar essa casaca ridícula.
Joseph passou a mão de Demetria sobre seu braço e seguiram o primo.
— Obrigada, Joseph. Você tem uma linda voz e a escolha do livro não poderia ter sido mais perfeita. Adorei sua leitura.
— Obrigado, mas minha intenção era ler um pouco e depois conversarmos. Achei que ficaríamos juntos por mais tempo.
Joseph parou de falar para ajudá-la a contornar um obstáculo, que pareceu a Demetria ser o tronco de uma árvore antiga, depois prosseguiu:
— A que festa você vai hoje à noite?
— Na dos Devereaux.
— Vou fazer o possível de vê-la lá então.
— Na verdade — Demetria ponderou —, é melhor você desistir dessa idéia. Taylor já disse que se você aparecer em outra festa que estivermos, não me deixará ficar sozinha nem por um minuto. Creio que ela desconfiou que estivemos juntos nos jardins de Prudhomme. Lamento muito.
— Não precisa se lamentar, nem se desculpar. Vou dar um jeito.
Antes que Demetria pudesse dizer qualquer outra palavra, eles já haviam chegado junto à carruagem e Joseph gentilmente a ajudou a subir.
— Até a noite.
— Lady Lovato. Que prazer o nosso em recebê-la!
Demetria acordou do tédio em que se encontrava e viu de forma embaçada, como sempre, os vultos azul-claro e pêssego que estavam à porta. Seria maldoso dizer que, com exceção de lady Havard e lady Achard, alguém mais se dirigisse à madrasta de maneira gentil. Pois, de um modo geral, eram as únicas pessoas que falavam com Taylor, daí sua estranheza em ouvir a anfitriã alegar prazer em vê-la.
A própria Taylor parecia surpresa, observou Demetria diante da dificuldade da madrasta em retribuir o cumprimento.
— Lady Devereaux e lady Mowbray. Boa noite. Muito obrigada pelo convite. Estamos muito contentes de estar aqui, muito contentes mesmo, não é, Demetria?
Demetria murmurou um assentimento, mas sua atenção estava voltada para o vulto azul, que só poderia ser lady Mowbray, a mãe de Joseph, uma vez que quem dera as boas-vindas fora a anfitriã, que usava pêssego,
— Então você é a encantadora Demetria — cumprimentou-a lady Mowbray, com um largo sorriso. — Falaram muito a seu respeito, minha querida, tanto meu filho, como meu sobrinho Mikey.
— Mikey Greville é seu sobrinho? — perguntou Taylor interessada, sem fazer qualquer comentário sobre Joseph.
Mesmo que não quisesse Demetria envolvida com Mowbray, a madrasta não era tola de esnobá-lo. Os Montfort eram muito influentes na sociedade, principalmente Isabel Montfort, lady Mowbray. Dessa maneira, em vez de exigir que Joseph se mantivesse longe dela, seu objetivo passou a ser o de tentar evitar qualquer lugar em que ele pudesse estar presente.
— Sim, ele é meu sobrinho — lady Mowbray confirmou, não ignorando a falta de comentário sobre Joseph. Pelo menos, foi o que Demetria imaginou diante de sua resposta sucinta.
— Ele é um jovem encantador — Taylor elogiou sorridente. — Ele saiu com Demetria para um passeio no parque hoje cedo.
— É, eu soube — respondeu lady Mowbray, em um tom de voz divertido.
Demetria teve a nítida impressão de que ela sabia do esquema que havia sido montado, mas foi pega de surpresa por suas palavras seguintes:
— Na verdade, Mikey tanto falou de Demetria que minha sobrinha, a irmã dele, quer conhecê-la.
— Ora, que gentil! Demetria bem que precisa fazer amigas aqui em Londres. Será muito bom para ela.
Demetria mordeu o lábio, sabendo que a madrasta imaginava que essa amizade poderia significar ascensão ao círculo social dos Mowbray. Mary Greville era considerada um diamante de primeira água. Conviver com ela só poderia elevar qualquer pessoa.
— Muito bom — disse lady Mowbray. — Então não vai se importar que eu a roube por algum tempo enquanto ajuda lady Devereaux.
— Vai roubá-la? — Taylor alarmou-se, receando que Demetria pudesse tropeçar ou trombar em qualquer coisa, arriscando-se a perder essa “oportunidade”.
— Se me der licença... Mary torceu o tornozelo hoje e é obrigada a ficar em repouso, com o pé para cima, por isso não pode vir até Demetria. Então vou levá-la até a sala em que ela está. Não se preocupe, tenho certeza de que as meninas vão se dar muito bem enquanto você ajuda lady Devereaux.
Aparentemente, Taylor não havia se dado conta do comentário feito pela primeira vez, perguntando em tom de incerteza:
— Lady Devereaux precisa de ajuda?
— Preciso, sim — lady Devereaux confirmou. — Disseram-me que você tem um gosto incrível...
Demetria não conseguiu ouvir o resto. Lady Mowbray apressou-se em afastá-la dali e conduziu-a até um hall. Ela a acompanhou em silêncio, sem saber o que dizer. Não conhecia lady Mowbray, nem tinha a mínima idéia do que estava acontecendo. Safar-se das garras de Taylor não era tarefa fácil, especialmente depois de ser pega no jardim de Prudhomme. Mas tudo aquilo havia sido muito bem armado.
— Chegamos — anunciou alegre a mãe de Joseph, abrindo a porta de um salão e fazendo-a entrar. — Demetria, apresento-lhe Mary — disse lady Mowbray ao fechar a porta. — Mary, esta é lady Demetria Lovato.
Demetria procurou ambientar os olhos ao novo ambiente, fixando-os no vulto rosa que estava sentado próximo à lareira, e sorriu ao ser apresentada.
— Olá, Demetria. É muito bom conhecê-la.
Demetria sorriu novamente, confusa ao constatar que o propósito de lady Mowbray era de fato apresentá-la à irmã de Mikey. Procurando disfarçar o desapontamento, ela disse:
— Sinto muito o que aconteceu com seu tornozelo.
— Oh, não se preocupe, está tudo bem com ele — Mary retrucou alegre. — Preciso fingir que está torcido somente por esta noite. Amanhã de manhã ele estará milagrosamente curado.
Demetria arregalou os olhos e não conseguiu disfarçar cara de espanto, preocupando-se com a impressão que estaria causando.
Pelo riso espontâneo de lady Mowbray, ela, sem dúvida, achara graça e, postando-se a seu lado, esclareceu:
— O problema de Mary foi inventado um pouco antes de virmos para o baile, quando Joseph me pediu ajuda para afastá-la de sua madrasta. Ele achou que Taylor dificultaria que vocês se vissem.
— E a senhora concordou em ajudá-lo? — Demetria perguntou, incrédula. 

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

O Amor é Cego Capitulo II

Demetria observou o movimento turvo do salão de baile e suspirou. Transcorrera apenas uma semana do baile dos Morrisey, onde conhecera o conde de Mowbray. Parecia meses. A vida voltara à rotina de sua semi-escuridão e da entediante atenção de Prudhomme.
Aparentemente, apesar do pequeno incidente, ele continuava a cortejá-la.
Naquele instante, Demetria agradecia o fato de ele, como o anfitrião do baile, estar muitíssimo ocupado para lhe dedicar qualquer atenção, mas estava bastante entediada. Entediada às lágrimas. Na verdade, estava um pouco obcecada pela noite em que conhecera Mowbray. E, apesar da proibição da madrasta, ansiava por reencontrá-lo.
Observava então os vultos das pessoas que passavam, prestando atenção a suas vozes e risadas.
Como se atraída por seu pensamento, aquela voz grave, suave, repentinamente sussurrou em seu ouvido:
— Esses eventos são maçantes, não são?
Voltando-se sobressaltada, Demetria viu o vulto escuro ao seu lado e piscou incrédula.
— Lorde Mowbray! — exclamou radiante, no mesmo minuto temendo ter se mostrado muito ansiosa. Perguntou então: — Maçantes por quê? Estou com cara de entediada?
Demetria pôde perceber o riso na voz dele ao comentar:
—Não pude evitar de vê-la bocejar quando me sentava.
— É... Talvez eu esteja mesmo um pouco entediada. — Demetria ficou rubra por ter sido pega bocejando. — Estou em Londres há quase cinco semanas e a noite em que o conheci foi a única coisa interessante que me aconteceu.
— Não achou interessante incendiar Prudhomme? — Joseph a provocou, fazendo-a corar mais ainda.
— Não me referia a esse tipo de coisa. Tão somente que eu me diverti em sua companhia.
— Você está me bajulando — comentou Joseph, com a voz enrouquecida.
— De forma alguma — Demetria assegurou, com sinceridade. — É a verdade. Me fez muito bem dançar com você, sem pisões ou tropeços.
— Então vamos dançar novamente — ele sugeriu, pegando-lhe a mão para fazê-la levantar.
— Oh, não! — Demetria exclamou, tirando a mão. Depois, desculpou-se com um sorriso. — Sinto muito, mas minha madrasta deve estar por perto e se nos vir juntos irá... Bem, ela não vai gostar. Espero que não se sinta ofendido com minhas palavras.
— Não, de forma alguma — disse Joseph em tom seco.
Demetria mordeu os lábios, sentindo-se infeliz. Sabia que ele tinha razão de se sentir insultado, mas não sabia de que outra forma poderia ter lhe dito.
Joseph deve ter entendido como se sentia, pois tomou sua mão e apertou-a com delicadeza.
— Não se preocupe. Sou forte. Além disso, não é a primeira vez que ouço esse tipo de comentário nesta temporada.
As palavras dele foram ditas de maneira meio casual e, até onde sua pouca visão conseguia perceber, ele parecia estar olhando ao redor agora. Talvez estivesse procurando uma desculpa para deixá-la, pensou, quando se voltou de maneira inesperada e apressou-a a levantar-se.
— Creio que não vejo sua madrasta e nenhuma das amigas dela por aqui neste momento. Se nos apressarmos, acho que podemos escapar para o terraço sem sermos notados.
— Ao terraço? — Demetria repetiu confusa, acompanhando-o pela mão. As portas do terraço ficavam bem ao lado do lugar onde estava sentada. — Não me parece prudente.
— Quero dançar com você.
— Dançar? — surpreendeu-se, ao perceber que ele fechava as portas do salão após passarem, cortando todo o burburinho dos convidados, o som da música e da conversação. — Mas, e se minha madrasta voltar e não me encontrar? Ela certamente virá me procurar aqui.
— É verdade — Joseph murmurou. — É melhor sairmos daqui então. Venha. Vamos ao jardim onde ela não poderá nos encontrar. Assim poderemos dançar.
Joseph, ao mesmo tempo em que falava, conduzia Demetria aos tropeços para poder acompanhar o passo dele. Nervosa, ela tentou lhe explicar:
— Não, milorde, creio que você não entendeu o que eu disse. Se ela der pela minha falta, vou estar em apuros quando voltar.
— Isso é fácil de resolver, basta dizer que necessidades urgentes a obrigaram a procurar um toalete.
— Milorde! — Espantou-se, não acreditando que ele ousasse mencionar uma coisa daquelas de forma tão crua. Isso não se fazia.
— Desculpe, eu só estava tentando... — Interrompendo o que ia dizer, exclamou: — Diacho, alguém está se aproximando!
Demetria esqueceu no mesmo instante a falta de boas maneiras dele; seu coração disparou de ansiedade.
— Será Taylor?
— Não sei, não dá para ver, mas ouço passos. Venha.
Puxando-a para um dos lados da trilha do jardim em que havia um pequeno bosque, os dois infiltraram-se entre os arbustos. Instintivamente, ficaram em silêncio, mantendo-se à espreita.
Um minuto depois, puderam visualizar duas figuras caminhando na direção em que estavam. Pura falta de sorte, em vez de seguir adiante, as duas pessoas pararam exatamente em frente ao local onde estavam escondidos e se abraçaram.
— Oh, Henry! — a mulher sussurrou.
— Hazel querida — fez-se ouvir uma voz trêmula.
Demetria franziu o cenho, reconhecendo de imediato a voz de Prudhomme.
— Diga-me que não é verdade que você tem intenção de se casar com aquela bobinha desastrada? — choramingou a voz feminina. — O que será de nós? Como irá ficar nossa grande paixão?
— Eu amo você, Hazel — assegurou Prudhomme. — E meu amor será seu até que eu morra, mas preciso ter um herdeiro. Minha mãe insiste nesse ponto.
Demetria riu internamente. Era Prudhomme, tinha mesmo certeza, e a única Hazel que conhecia era lady Achard!
— Sim, mas...
— Quietinha, meu amor. — Prudhomme procurou acalmá-la. — Deixe-me apenas abraçá-la e fingir que meus sonhos de todas as noites estão se realizando. Que você é minha e que não precisamos ficar nos ocultando.
Houve então um ruge-ruge de seda e um breve silêncio. Demetria sabia que estavam se abraçando, mas pouco depois ouviu o som de beijos estalados. Curiosa, procurou ficar na ponta dos pés para tentar ver alguma coisa entre os arbustos, mas tudo o que conseguia enxergar eram imagens nebulosas do colorido traje de lady Achard e o vulto mais escuro e esguio de seu acompanhante.
Estavam tão colados um no outro que seus rostos pareciam um grande borrão sob uma única peruca branca.
Como se beijavam! Demetria ficou consternada, pensando em lorde Achard. Não tinha dúvida de que era Hazel Achard. Ela fazia parte do círculo de amigas da madrasta. Com frequência suas atitudes em relação à Demetria eram bastante críticas e frias. Agora entendia a razão. Era ciúme pela corte que Prudhomme lhe fazia.
— Oh, Henry, vamos fazer amor — sugeriu Hazel, arfando.
— Mas acabamos de fazer, meu bem — Prudhomme protestou. — Sou apenas um. Não consigo ter um novo desempenho tão rápido. Preciso me recuperar do fogo que você acende em mim.
— Ah! Houve um longo suspiro de desapontamento, e então: — Se fôssemos casados...
— Se fôssemos casados, poderia tê-la em meus braços, como a tenho agora, todas as noites — Prudhomme proclamou baixinho e depois praguejou: — Dane-se seu marido por ter tão boa saúde!
— Sim, que se dane — Hazel concordou. — Queria que ele...
— Shhh! — Prudhomme interrompeu-a.
— O que foi? — perguntou, soando ansiosa.
— Acho que ouço alguém se aproximando.
O casal se separou imediatamente; pouco depois surgiu uma outra mulher e parou aparentemente surpresa ao vê-los.
— Ora, lorde Prudhomme. Lady Achard.
Reconhecendo a voz de Alice Havard, uma outra amiga da madrasta, Demetria se encolheu ainda mais entre os arbustos.
— Lady Havard! — o casal exclamou em uníssono, como se não estivessem em fervoroso idílio uns minutos antes.
— Tomando um pouco de ar fresco, Alice? — Hazel perguntou meio desconfiada.
— Estou, sim. Está bastante quente lá dentro — lady Havard confirmou, acrescentando com uma certa ironia: — De fato, foi o que acabei de comentar com lorde Achard um minuto atrás.
— Arthur está aqui? — Não passou despercebido o tom de alarme na voz de Hazel. — Mas ele disse que não estava com disposição de vir hoje.
— Hum, acho que ele mudou de ideia — murmurou lady Havard satisfeita. — A propósito, ele me perguntou se eu sabia onde você estava, e eu lhe disse que achava que você tivesse se dirigido à mesa para jantar.
— Oh! — Houve uma certa hesitação e depois o vulto de Hazel voltou-se para Prudhomme. — Muito obrigada, milorde. Foi muita gentileza sua dispor de seu tempo para me mostrar o jardim. Devo entrar agora. — Ela hesitou por um momento, depois perguntou com muita astúcia: — Me acompanha, lady Havard?
— Não, acho que gostaria de ver a nova fonte de lorde Prudhomme. Isso se você não se importar de me mostrar, Henry?
— Sim, sim, vamos — respondeu Prudhomme imediatamente. — Será um prazer.
— Então vou indo — disse Hazei, obviamente relutante, e seu vulto se afastou.
Demetria esperava que Prudhomme e lady Havard saíssem logo dali e então ela e Joseph poderiam livrar-se do esconderijo e voltar à festa. Quase suspirou de alívio. Mas estava enganada.
Assim que Hazel se foi, lady Havard voltou-se para Prudhomme e, com a voz embargada de ciúme, perguntou:
— O que ela queria?
— Hazel disse que precisava de um pouco de ar fresco e me pediu que lhe mostrasse as novidades do jardim, o que eu não poderia recusar — explicou Prudhomme em tom inocente, fazendo Demetria revirar os olhos de indignação.
Deus meu, o homem é um mentiroso compulsivo.
— Ah! — exclamou lady Havard parecendo aliviada, resmungando depois: — Quando os vi saindo, pensei...
— Quietinha, meu amor. — Prudhomme tomou-a nos braços. — Saiba que não há mais ninguém para mim. Eu a amo, Alice, e amarei até morrer.
— Verdade, Henry? — Ela suspirou ao ser beijada ao longo do pescoço. — É que ando tão enciumada ultimamente.
— Não há razão alguma para que você tenha ciúme, meu bem.
Demetria apertou mais os olhos e se esgueirou um pouco ao perceber que Prudhomme dera um passo para trás.
Santo Deus! O homem acabava de despir os seios de lady Havard ali mesmo no jardim, Demetria concluiu chocada ao perceber a movimentação das manchas e o ruidoso estalo de beijos.
Lady Havard arfou, depois encheu as mãos com a cabeça emperucada de Prudhomme, levantando-a do peito.
— E quanto àquela menina?
— Demetria? — A voz de Prudhomme soou cheia de desprezo ao pronunciar o nome. — É apenas uma criança. O que sabe ela de uma paixão como a nossa?
— Então é amor mesmo o que sente por mim? — ela insistiu.
— Claro! — ele a tranquilizou.
Seus vultos se juntaram novamente, e pôde se ouvir a reafirmação dele:
— À noite sonho com você, que você é minha e não precisamos mais de encontros furtivos, e acordo com seu nome em meus lábios.
Como sonha esse homem, pensou Demetria, e como encontrará tempo para enganar as duas damas?
— Oh, Henry — lady Havard não se conteve —, já pensou se eu fosse sua e pudéssemos nos abraçar assim todas as noites?
— Nem fale — concordou Prudhomme, em tom apaixonado. — Dane-se seu marido por ter tão boa saúde.
Demetria precisou se controlar para não soltar uma exclamação ao ouvir o mesmo refrão.
— Agora deixe-me aproveitar esses poucos momentos que a tenho. — Prudhomme, ajoelhou-se subitamente, desaparecendo sob a saia esverdeada de lady Havard.
Sem enxergar direito, mas percebendo pelos vultos o que havia acontecido, Demetria começou a perguntar, meio sem pensar:
— Que diabo ele...
Mowbray tapou-lhe a boca com a mão e, já tendo conseguido se localizar, imediatamente puxou-a com delicadeza, conduzindo-a entre os arbustos, para que cruzassem o pequeno bosque.
Agarrando-se no braço dele para não perder o equilíbrio, Demetria se voltou para olhar mais uma vez para os vultos de Prudhomme e lady Havard. Como queria estar de óculos! Embora não tivesse ideia do que ele estava fazendo sob a saia dela, os gemidos que a mulher emitia eram muito sugestivos.
Eles finalmente conseguiram chegar ao outro lado do jardim, e Joseph apressou-a a afastar-se dali.
— Céus o que eles estavam fazendo? — ela perguntou curiosa e arfante quando Joseph a fez parar em uma outra pequena clareira.
Mowbray ficou um tanto desconcertado e fitou-a enternecido. — Vou lhe explicar um dia, milady. Não é hora ainda.
— Por quê? — ela insistiu.
— Porque você é ainda inocente demais para entender certas coisas. Ficaria muito constrangida. E porque acho que devemos voltar para o baile — concluiu Joseph, soando aliviado por encontrar outra desculpa.
— Nem tivemos uma chance de dançar — Demetria protestou, refletindo que, se era para se meter em apuros, poderia pelo menos ter dançado um pouco.
— Fica para uma outra vez — Joseph gentilmente prometeu, sorrindo.
— Temo que não haverá uma outra vez, milorde. Taylor tem evitado estar onde você possa aparecer. Só estamos aqui porque ela pensou que você não aceitaria o convite de Prudhomme.
— Então é por isso que não consegui encontrá-la em nenhum outro baile esta semana — Joseph disse baixinho, completando secamente: — Sua madrasta estava certa, normalmente eu não viria a este baile.
— Então por que veio? — Demetria sustou a respiração depois de fazer a pergunta.
— Porque sei que Prudhomme é seu pretendente e imaginei que você viria.
— De verdade? — ela perguntou com um sorriso.
— Sim, de verdade.
Demetria sentiu que Joseph sorria também. Ele então passou delicadamente os dedos sobre seus olhos, para que parasse de apertá-los e disse:
— Eu também gostei muito de nossa conversa no baile de Morrisey e, desde então, estava ansioso por reencontrá-la.
Um largo sorriso iluminou o rosto de Demetria, expressando todo o prazer que sentia diante de tais palavras.
— Só queria...
— Me diga, o que você quer? — Joseph apressou-se a perguntar ao vê-la hesitar.
Demetria encolheu os ombros, entristecida.
— Queria que Taylor não antipatizasse tanto com você.
Ambos aproximaram-se do salão, pensativos e calados.
Joseph parou e fez com que ela se voltasse para ele.
— Talvez haja uma maneira de contornarmos isso.
— Que maneira? — indagou Demetria, em um misto de curiosidade e esperança.
Joseph fitou-a em silêncio, meneando depois a cabeça em assentimento, como se concordasse com a ideia que tivera. Ele apertou a mão que segurava o braço dela e disse:
— Demetria, se meu primo for procurá-la nos próximos dias e se oferecer para levá-la a um passeio, tente envolver sua madrasta na conversação.
— Seu primo? — ela perguntou, indecisa.
— Mikey Greville — Joseph esclareceu. — Vou pedir a ele que a pegue. Sua madrasta vai aprovar. Ele sairá com você, e eu os encontrarei no parque.
Demetria franziu o cenho, reconhecendo o nome.
— Acho que já nos conhecemos e é pouco provável que ele concorde em me buscar, milorde.
— Ele me contou sobre o encontro de vocês.
— Contou? — ela perguntou, ficando sem-graça.
— Contou, sim, mas não se preocupe, conversei com Mikey a respeito de sua visão. Ele terá prazer em nos ajudar.
— Talvez tenha — murmurou Demetria em dúvida. Depois, mordendo o lábio e olhando para o rosto borrado dele, perguntou em tom ansioso: — Ele não é um mundano, é?
Ao sentir a hesitação de Joseph, ela se apressou em explicar:
— Pois essa é a razão de Taylor se opor a você. Apesar de que, no seu caso, tenho certeza de que ela está enganada, mas se Mikey for um...
— Vai dar tudo certo.
Demetria sentiu o coração acelerar, desejando acreditar nele, ao mesmo tempo não acreditando que algo tão maravilhoso pudesse acontecer em sua vida.
Tivera muito poucas alegrias nos dez últimos anos. Primeiro a doença da mãe e o terrível caso com o capitão Fielding... Depois a mãe morreu e enquanto ela ainda vivenciava o luto, o pai casou-se com a horrível Taylor. Desde então a vida no campo havia sido um verdadeiro martírio, com Taylor fazendo questão de lembrá-la de sua vergonhosa experiência sempre que podia. Era frequente acusá-la de ter precipitado a morte da mãe com o escândalo que impusera a toda a família.
Demetria sabia do ressentimento que Taylor sentia por ela e que a culpava pelo pai evitar ir a Londres. Infelizmente, tinha de concordar que Taylor tinha razão.
A madrasta a detestava por isso, pois havia perdido várias temporadas em Londres e não fazia segredo de que não via a hora de livrar-se dela.
Demetria também sabia que, no que dependesse de Taylor, ela tudo faria para que estivesse amarrada ao odioso Prudhomme pelo resto da vida. E devia saber muito bem que horror o homenzinho era. Desconfiava que por algum tempo os dois tivessem sido mais do que amigos como as atuais circunstâncias mostravam. Ela se perguntava se Prudhomme eventualmente não teria também jurado amor eterno a Taylor e praguejado contra a boa saúde de seu pai. Não iria surpreendê-la nem um pouco.
— Demetria!... Demetria!
A voz de Taylor cortando a noite quase a fez gritar de susto. Embora próximos do salão, ainda estavam na trilha que circundava o bosque e puderam uma vez mais infiltrar-se entre os arbustos.
— Psiu... — Joseph sussurrou baixinho quando ela abriu a boca para despedir-se dele enquanto ainda dava tempo. — Vá! Ela não me viu. Não mencione meu nome. Diga simplesmente que você saiu para tomar um pouco de ar fresco.
— Está bem — Demetria sussurrou.
— E não se esqueça do acordo com meu primo. Mikey Greville vai procurá-la amanhã.
Sussurrando um boa-noite para Joseph, ela reapareceu na trilha e começou a dar alguns passos hesitantes em direção à voz da madrasta.
Joseph aguardou até que Taylor e Demetria entrassem na casa para sair do bosque. Não quis mais voltar ao salão. Seguiu pela lateral da casa até chegar ao pátio da frente e solicitou sua carruagem.
Já no veículo, instruiu o motorista para levá-lo a uma das casas de jogatina de pior reputação na cidade, na certeza de que encontraria Mikey por lá.
Como esperado, Joseph encontrou o primo jogando e achou graça do choque que ele levou ao vê-lo.
— Joseph! — reagiu Mikey surpreso, ao sentir um tapinha no ombro e se voltar para ver quem era. — Pensei que nunca mais o veria por aqui. Desde que você voltou da guerra, parece que abdicou desse tipo de divertimento. Junte-se a nós, sente-se aqui — ele propôs, visivelmente contente de ter o antigo parceiro de volta.
Joseph hesitou, depois sentou-se, pouco à vontade para falar sobre a razão de estar ali na frente de todos. Sabia, porém, que se ousasse tirar Mikey do jogo, dificilmente teria a ajuda pretendida. Conformado em passar algumas horas naquele ambiente enfumaçado e vicioso, teve ainda de ignorar os olhares curiosos para sua cicatriz e ficou repassando mentalmente os argumentos que usaria para convencer o primo tão logo saíssem dali.
— Você deve estar louco! — Mikey exclamou.
À saída daquele antro infernal, Joseph havia convidado o primo para um drinque e, finalmente, fez o pedido ao levá-lo em sua carruagem para casa duas horas mais tarde.
Joseph estranhou a reação de Mikey. Não era a que esperava. Após ter explicado suas razões, estava certo de que ele entenderia e seria mais colaborador.
— Por que louco?
— Porque é uma loucura achar que eu de bom grado me exporia a esse perigo — Mikey disse rindo, ao entrarem na casa e dirigir-se à biblioteca. — O que será de meus herdeiros, se é que vou tê-los, caso a desastrada provoque novamente um acidente?
Joseph balançou a cabeça em desaprovação enquanto Mikey jogava-se em uma das poltronas de couro ao lado da lareira. Joseph encaminhou-se para uma mesinha giratória onde havia copos e uma garrafa de uísque.
— Estamos falando de uma moça frágil, não de uma batalha do exército francês.
— Na verdade Demetria consegue fazer mais estragos do que todo o exército francês junto — Mikey retorquiu.
Joseph apertou os lábios e permaneceu calado, refletindo sobre um argumento mais convincente enquanto servia um copo de uísque para cada um. Ao terminar, recolocou a tampa na garrafa, pegou os copos e cruzou a sala, dizendo antes de servir o primo:
— Eu só queria que você a buscasse e a levasse de volta. Você ficaria muito pouco tempo com ela, Reggy.
— Eu sei, mas.
— Eu agradeceria muito — Joseph acrescentou, entregando o copo para ele.
Depois de alguns minutos de silêncio, em que ficaram se olhando, Mikey pegou seu drinque e deu um suspiro.
— Está bem — resmungou, caçoando do primo: — Tudo em nome do amor e do romance... Mas espero que você se lembre disso quando eu precisar de ajuda.
— Lembrarei — Joseph assegurou aliviado e sentou-se na poltrona oposta à do primo.
— Bravo, meu velho. Então pego lady Demetria amanhã e a levo para onde?
Joseph hesitou para responder, sabendo que essa seria a parte mais delicada.
— Podemos pensar a respeito em um minuto, mas antes preciso lhe falar sobre um pequeno detalhe.
De sobreaviso pelo tom de voz do primo, Mikey arqueou a sobrancelha.
— E qual é ele?
— É difícil abordar o assunto, mas a madrasta de Demetria não gosta de... homens mundanos. — Observando a reação do primo, Joseph extravasou seu desconforto mexendo-se na poltrona. — Pensei que talvez você possa usar com lady Lovato a mesma tática de abordagem que usou com lady Strummond para convencê-la a deixar que saísse com a filha.
— Que é isso, Mowbray, com efeito!
Joseph esmoreceu diante da expressão do primo:
— Bem, funcionou com lady Strummond.
— Sim, funcionou, mas...
— Poderá funcionar novamente — insistiu. — Tenho certeza. Só você tem talento para isso.
— Primo — disse Mikey de cara amarrada —, uma coisa é bancar o almofadinha para se conquistar alguém para si mesmo, e outra bem diferente é para...
— Por favor — Joseph interrompeu.
Mikey arregalou os olhos, incrédulo. Joseph Jonas, conde de Mowbray, nunca dizia “por favor”. Jamais. Sentindo-se sem saída, voltou os olhos, com ar pensativo, para as cinzas da lareira e suspirou resignado.
— Está bem.
— Um tal de lorde Greville está à porta e quer saber se as ladies Lovato estão em casa, para visitá-las.
Demetria ergueu a cabeça do encosto do sofá em que estava sentada e, piscando várias vezes, tentou ver por cima da figura do mordomo quem estava à porta.
— Quem você disse que está aí, Foulkes? — perguntou Taylor.
— Lorde Greville — o mordomo repetiu, com ar entediado.
Demetria mordeu os lábios e se controlou para não parecer eufórica demais. Mowbray estava cumprindo o que prometera. O primo viera em seu lugar. De dedos cruzados, ela começou, intimamente, a rezar para que a madrasta não o dispensasse e estragasse tudo. Pela voz, Taylor parecia estar confusa:
— Pensei que você conhecesse lorde Greville.
Demetria entendeu a intenção. Se ela já tivera um primeiro encontro com ele, por que cargas d’água ele a procuraria novamente?
— Conheço. Ele é um homem muito agradável.
— Sei! — Taylor não pareceu muito convencida. — Poderia jurar que ouvi dizer que ele...
Assim que fez uma pausa, lady Havard que fora tomar chá com elas e acabara ficando para bisbilhotar um pouco, aparteou:
— Também ouvi comentários de que ele é meio farrista, Taylor, mas acho que é pura maldade. Inveja, muito provavelmente. Ele provém de ótima família e é bastante amigo do rei.
Demetria entendia muito bem a razão de lady Havard encorajar Taylor a permitir as atenções de Greville. Não havia dúvida de que era por causa do ciúme que sentia de Prudhomme. Mas para ela isso pouco importava. Só podia agradecer a interferência da amiga da madrasta e, de respiração suspensa, ficou aguardando o veredicto.
— Muito bem, Foulkes, faça-o entrar.
— Pois não, milady — Foulkes murmurou, retirando-se da sala.
Demetria aguardava com impaciência, torcendo para que o truque desse certo e pudesse logo estar com Mowbray novamente. Fez-se um súbito silêncio na sala, à espera de que Foulkes abrisse a porta e confirmasse que as senhoras estavam.
— Ora viva! Deixe-me entrar então! — Uma voz alegre reverberou.
O visitante continuou expressando, aparentemente, sua satisfação de que estivessem na residência, sem que Demetria conseguisse entender o que dizia.
— Ah, ladies! — As duas palavras foram pronunciadas calorosamente.
Demetria endireitou o corpo que mantivera erguido, tentando ouvir o que o visitante dizia.
Taylor, demonstrando-se encantada, levantou-se para recebê-lo.
— Lorde Greville, que gentileza sua vir nos visitar.
— Ah, que nada, que nada. O prazer é todo meu. — Cruzando a sala, ele se encaminhou para a anfitriã e curvou-se para cumprimentá-la com um beija-mão. Depois, voltou-se para o lado em que Demetria estava sentada. — Ah, lady Demetria, sempre encantadora. Muito encantadora. — Tomando-lhe a mão, levou-a também aos lábios e a beijou, dirigindo-se então a lady Havard. — Que prazer em vê-la, lady Havard! Que homem de sorte eu sou. Três lindas mulheres em uma única sala.
— Lisonja sua, milorde — Taylor derreteu-se, — Gostaria de tomar um chá?
— Certamente, certamente. Muito amável.
— Sente-se.
— Obrigado.
Houve um momento de silêncio, quando todos se acomodaram em suas poltronas, com exceção de Demetria que não havia se mexido do lugar, e depois uma troca geral de sorrisos.
— Que surpresa, milorde. A que devemos sua visita? — Taylor perguntou, servindo-lhe o chá.
— Dever? — perguntou ele, mostrando-se espantado. — Não me devem nada. Nunca cobro pela minha presença, por mais prazerosa que seja.
Ele gargalhou de maneira quase feminina, fazendo com que Demetria arregalasse os olhos horrorizada.
Deus do céu! Ela era quase cega; mas não surda. Esse homem tinha o mesmo tom grave de voz do primo. Suas palavras tinham sido adequadas. Não era o mesmo lorde Greville que conhecera, disse a si mesma ao ouvir a reação alegre da madrasta e sua amiga à brincadeira dele.
Mas quem seria então, perguntou-se. Com certeza, se aquele não fosse o verdadeiro Greville, Taylor e lady Havard, que tinham excelente visão, reconheceriam um intruso, mas nenhuma das duas se mostrou alarmada. Tudo o que Demetria podia pensar é que se tratasse mesmo de lorde Greville, fazendo uma encenação, embora não conseguisse entender o porquê de estar se comportando daquela maneira. Francamente, ele mais parecia um almofadinha afeminado.
Só quando isso lhe ocorreu, Demetria se lembrou de ter perguntado a Mowbray se o primo não era um mundano e tê-lo avisado de que, se fosse, a madrasta jamais permitiria que saísse com ele. Estava claro que os dois haviam decidido sossegar os temores de Taylor com um verdadeiro desempenho de ator.
Demetria  maravilhou-se com a habilidade teatral de Greville falando em tom confidencial:
— Na realidade, estou estreando minha nova casaca e meu novo chapéu, e estava curioso de saber que efeito causariam nas mais encantadoras damas de Londres. — Após dar a explicação, Mikey levantou-se com uma pirueta, para melhor exibir seu traje.
Taylor e lady Havard riram como duas meninas diante do galanteio e da exibição.
— O que você acha? — ele perguntou, postando-se na frente de Demetria. — Belo corte, não?
Ela forçou os olhos, tentando captar algum detalhe da roupa, mas tudo o que via era um borrão verde-amarelado. Foi Taylor quem quebrou o silêncio para salvá-la do constrangimento.
— Muito elegante, milorde. Gostaria de ter o nome de seu alfaiate para dar a meu marido.
— É notável — lady Havard concordou.
Aparentemente satisfeito com os elogios, Greville voltou a sentar-se com um suspiro de satisfação.
— Tento estar sempre na moda. Gostaria também de combinar a camisa com as calças, o que as senhoras acham?
— Soa perfeito — Taylor murmurou indecisa, sendo endossada por lady Havard na mesma entonação de voz de quem não sabe bem o que dizer.
Demetria, porém, não conteve a curiosidade:
— De que maneira, milorde?
Greville explicou pacientemente, e Demetria ergueu as sobrancelhas ao imaginá-lo usando camisa e calças verde-amareladas, combinando com a casaca da mesma cor.
Ele obviamente notou a expressão surpresa dela e, mal disfarçando a voz de quem estava se divertindo com a situação, tratou de esclarecer:
— Mas achei que combinar tudo talvez fosse um pouco de exagero, por isso optei pela camisa branca. Não gosto de jogar dinheiro fora.
— Naturalmente. Ficou muito bem assim, milorde — Taylor disse como se estivesse muito a par das tendências.
Demetria começou a se preocupar que depois daquela conversa fútil, Taylor não permitiria que saísse com Greville, apesar dos esforços dele. Naquele instante, porém, ele tirou o relógio de bolso e endireitou o corpo na poltrona.
— Ora, ora, meu relógio diz que é hora de ir — Greville anunciou, e Demetria pensou que ele próprio talvez começasse a achar que estava exagerando.
— Já vai? Mas você mal chegou. — Apesar do comentário, Taylor parecia aliviada.
— Está na hora. Na verdade, não pretendia mesmo ficar muito. Minha intenção era perguntar se lady Demetria poderia me acompanhar em um passeio pelo parque. Quero exibir meu novo figurino em público, mas não gostaria de cavalgar sozinho, não fica bem.
— Bem... — Taylor hesitou por um momento e olhou para lady Havard.
Demetria quase podia ouvir os pensamentos da madrasta. Não havia dúvida de que estava confrontando os boatos sobre o comportamento mundano de Greville com o cavalheiro sentado em sua sala.
— Taylor, deixe-os ir — lady Havard interferiu, carinhosa. — Lorde Greville saberá cuidar muito bem dos dois.
Aparentemente a encenação de Mikey convencera a madrasta de que nada havia a temer, pois, de outro modo, mesmo a interferência de lady Havard não teria surtido efeito.
— Muito bem — ela concordou, balançando a cabeça. — Mas não se esqueçam das máscaras e tenham cuidado e não...
Eufórica ante a perspectiva de rever Mowbray, Demetria aceitou e colocou a máscara que Taylor lhe entregara enquanto repassava a ladainha de sempre. Não tocar em nada, não andar sem ser de mãos dadas com lorde Greville para que ele a guiasse, e assim por diante. Demetria já tinha ouvido tantas vezes essas recomendações que sabia do cor. A cada uma, ela balançava a cabeça em assentimento.
Lady Havard os acompanhou até a porta e depois se apressou em também ir abrir a porta da carruagem, estacionada na rua em frente à residência dos Lovato, e Demetria foi alçada ao banco por Greville.
— Nossa, graças a Deus que acabou!
Demetria ouviu o comentário aliviado de Greville ao pegar as rédeas dos cavalos. O inesperado tom grave e muito mais masculino de sua voz agiu como um catalisador, liberando seu riso diante de toda aquela situação. Uma gargalhada espontânea brotou de seus lábios e seu rosto ficou corado.
— Sinto muito, milorde — Demetria disse então em um só fôlego. — Você deve estar me achando terrivelmente mal-agradecida, e longe de mim isso. Mas é que estava imaginando a consternação de minha madrasta por tentar acompanhar a conversa e não conseguir. Ela odeia parecer ignorante.
— Essa é que é a maior estupidez — Mikey retrucou de imediato.
Demetria refletia sobre o que tinha ouvido quando ele acrescentou:
— Trate Joseph com carinho. Ele tem muitas cicatrizes e nem todas são visíveis.
Demetria ia perguntar o que significavam aquelas palavras enigmáticas quando a carruagem parou. No mesmo instante, uma outra carruagem emparelhou com a deles. Era uma carruagem fechada. Observou ansiosa a porta ser aberta e um vulto saltar.
— Vejo que tudo deu certo.
Demetria reconheceu de imediato a voz de Mowbray e não se importou de adiar a pergunta que gostaria de ter feito a Greville. Ela sorriu quando Joseph se aproximou e com a respiração suspensa foi tirada da carruagem e colocada no chão.
— Você está em dívida comigo, primo — murmurou Greville da carruagem.
— Sei disso — Mowbray concordou, e Demetria sentiu o riso em sua voz. — Vamos ficar por perto, Reggy, assim você nos encontrará facilmente na hora de levar Demetria para casa.
— Combinado — Greville respondeu, sacudindo as rédeas para fazer a carruagem andar.
Assim que a carruagem desapareceu ao longo do parque, Joseph propôs que caminhassem um pouco.
— Acho preferível a desfilar de carruagem e ficar olhando para outros nobres, mesmo porque me desfiz de minha carruagem aberta e agora só teria uma fechada — ele justificou-se.
Demetria hesitou por um momento e, esboçando um sorriso tímido, concordou:
— Você acertou. Não estou nem um pouco interessada em “olhar” para outros nobres, como parece ser a moda; de qualquer forma, não conseguiria enxergá-los mesmo. Além disso, acho que não seria nada prudente sermos vistos na carruagem, pois se minha madrasta viesse a saber...
— Mas estamos usando máscaras — Joseph mais do que depressa interrompeu-a. — ninguém nos reconheceria.
Demetria inconscientemente levou a mão à máscara que madrasta insistira que usasse antes de sair. Estava na moda, naquela temporada, cavalgar usando máscara, e o que quer que estivesse na moda Taylor a obrigava a usar.
— Será que minha falta de visão não vai nos causar algum embaraço?
Joseph pegou a mão dela e a colocou em seu braço.
— Fique tranquila, lady Demetria, não permitirei que seja desastrada.
Demetria relaxou no mesmo instante diante da atitude dele e sentiu-se feliz ao caminharem por uma alameda, aparentemente linda, cujas árvores e flores lamentavelmente não conseguia enxergar direito. Aguçando os ouvidos, depois de algum tempo, ela interrompeu o silêncio que já começava a incomodá-la.
— É o barulho de água que ouço, milorde?
Joseph olhou ao redor
— Não me parece — começou a dizer e fez uma pausa. — Já faz um bom tempo que não venho aqui, por isso não me lembro bem se esses jardins têm cascatas ou fontes. — No mesmo instante, porém, voltou-se para ela e disse sorrindo: — Você tem excelente ouvido, milady. Embora eu mesmo não consiga ouvir, lembrei-me de que há uma fonte próxima daqui. Vamos tentar encontrá-la!
Poucos minutos depois, ele viu a fonte e conduziu Demetria até ela. Permaneceram ali por algum tempo, ambos sentindo-se estranhamente desconfortáveis um com o outro.
Demetria fingiu estar contemplando a água a sua frente, mas sua mente estava toda concentrada no homem a seu lado. Era uma agonia estar tão consciente da presença dele, e agonia maior ainda, o silêncio que pairava entre os dois como uma barreira. Eles pareciam ter se entendido tão bem no baile em que se conheceram e agora que estavam sozinhos nada tinham a dizer. Era muito desconcertante. Ela buscava, desesperada, na mente algo para dizer quando Joseph deu uma pequena gargalhada.
— O que foi? — ela perguntou, levantando curiosa o rosto para ele.
— Nada... — disse Joseph, acrescentando depois: — Estava apenas pensando que sou um idiota, parado aqui quase em pânico, procurando desesperadamente algum tópico para conversarmos, mas parece que perdi toda a capacidade de falar. — Antes de qualquer protesto, Joseph acrescentou: — Ao menos perto de você, lady Demetria , fico nervoso como um adolescente.
— Me sinto assim também — Demetria admitiu tranquilamente. — E acho estranho. Não houve qualquer problema nas duas vezes em que estivemos juntos e não entendo a razão disso agora.
— Nem eu — Joseph concordou. — Mas, felizmente, não sou tão bobo assim, por isso trouxe algo para nos distrairmos.
Delicadamente, ele voltou a colocar a mão de Demetria sobre seu braço e começaram a se afastar da fonte. Observando a expressão curiosa de sua acompanhante, ele enfiou a mão no bolso e tirou um objeto escuro, colocando a mão dela sobre o mesmo.
— Um livro? — Demetria perguntou surpresa.
— Sim, um livro. Vou ler para você.
— Vai ler para mim?
— Lembro-me de você ter me dito que, entre todas as coisas, o que mais sentia falta por não ter os óculos era de poder ler. Então pensei em ler para você. Sei que não a mesma coisa que ler para si mesma, mas espero poder distraí-la um pouco.
— Nossa, tenho certeza de que vou adorar — Demetria apressou-se em dizer, não somente comovida pela atenção dele, como também agradecida de que tivesse encontrado um meio de compensar a falta de assunto. — E onde se dará essa leitura? — quis saber.
— Veja logo ali há um pequeno caramanchão onde poderemos usufruir da sombra enquanto leio para você.
— Que livro você escolheu? — perguntou curiosa, assim que Joseph escolheu um banco para se sentarem.
— Trouxe O Rapto da Madeixa de...
— Alexandre Pope.
— Isso — ele confirmou, obviamente surpreso por ela conhecer. — Você gosta dele?
Demetria sorriu e assentiu com a cabeça.
— Bem, então vou começar.